Piquenique na Estrada Sim, Stalker Não

Longe dizer que Stalker, aclamado filme do Tarkovsky de 1979, seja um filme ruim, acho que é preciso reavaliá-lo, agora que li a brilhante novela de ficção científica realista dos irmãos Strugatsky (escrito em 1971, mas só publicado em 1977), Piquenique na Estrada. É que se o filme traz a beleza decadente da periferia, em meio a uma litania existencialista tortuosa, o livro nos mostra uma relação muito mais intrincada. O possível piquenique alienígena tem como resultado a formação das Zonas, bairros contaminados com o exógeno. Nesses locais há muitos perigos mas também oportunidades, e os ditos stalkers vão lá coletar bugigangas incompreensíveis, verdadeiras caixas-pretas últimas, afim de vendê-las. Em torno dessa atividade a cidade é remodelada, tomada por um complexo socioeconômico emergente, com o componente dominante científico-militar e seu correlato natural, o contrabando mafioso, assim como uma rede de relações adjuntas, como a entre stalkers e estes, além da aparição de detetives à paisana, um florescimento local de bares, prostíbulos, festas, cirurgiões vanguardistas… Em tudo isso há um enfrentamento entre o caráter bronco e periférico dos stalkers e o oportunismo variado que a situação provém. Mas há em tudo isso algo de muito decadente, que se mostra no que é demasiado humano; como a marginalidade inescapável se impõe e o humano nisso não muda, mesmo frente ao desconhecido.

A impressão que tenho é então que talvez Tarkovsky esteja pegando materiais diferentes e sempre tentando fazer o mesmo filme. Um filme de uma história bem mais simples, porque envolta em um misticismo existencial que para mim atinge seu máximo no Andrei Rublev. Possivelmente isso é um exagero. Mas que seja, uma versão mais fraca disso: talvez Tarkovsky esteja apenas interessado em sua visão de mundo e se imunize contra a riqueza do material que trabalha. O que me levará certamente a ler o Solaris, do Stanisław Lem.

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Um comentário sobre “Piquenique na Estrada Sim, Stalker Não

  1. Efetivamente, à época que Tarkovsky realizou Rublev e seus dois filmes referentes a obras de SF, havia uma listas de temas “propostos” pelo buro estatal de arte soviética, dentre eles justamente temas históricos russos e sf. Tanto o romance do Lem quanto o dos irmãos strugatsky serviram como meios de Tarkovsky, que não gostava de SF, burlar as regras estatais e receber financiamento para suas obras. Enquanto o tema de Tarkovsky em solaris é a terra 🌎como lar, no Solário de Lem o tema é o planeta Solaris. As melhores partes do romance de Lem para mim são as descrições do planeta, se é que é um planeta…

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