Dada nossa quarentena bíblica (“dos mil dias”, pra lembrar a polêmica em torno do apocalipse), assistir vídeos de música tornou-se corriqueiro. Eu queria fazer alguns comentários sobre essa situação e em seguida recomendar alguns deles.
1. Apesar de tudo, convencionou-se chamar de live esses vídeos. Logo no começo da pandemia lembro de como muitos desistiram do formato ao vivo: qualidade do áudio da transmissão ruim, problemas com a qualidade da transmissão (internet instável) e dificuldade com lidar com as ferramentas de streaming. Possibilidade de erros ou intromissões enquanto um artista, geralmente sem nenhum assistente, continua a tocar. Assim, como não havia e não há perspectiva de haver dinheiro e recursos para uma melhor conexão de internet, uma equipe de filmagem e streaming (mesmo que mínima, somos precários mesmo), nunca mais vi pessoas fazendo realmente lives. A maioria dos artistas opta, entretanto, quando a coisa é mais próxima de um show, de tocar como se fosse uma sessão de gravação ao vivo. Daí a justificativa. Mas como trata-se de vídeo, muitos não viram essa necessidade e fazem verdadeiros vídeos mesmo. O tempo de preparo de um show é transferido para aquele de preparo de um vídeo, e há como buscar colaboradores específicos para a elaboração do vídeo, ou aproximar-se desse formato sem pretensões de vídeo-artista desenvolvido, mas com uma certa leveza de quem tem agora necessidade de se apropriar do meio. Agora, há também quem resolva por algo mais documental, e a economia de esforços também é uma boa justificativa pra buscar esses formatos. Em muitos shows afinal, vc só chega, monta e toca.
2. A ideia de estréia de vídeo, com data horário específico, colocou-se como algo intermediário: não é que não se possa assistir ao vídeo à qualquer hora, mas é melhor vê-lo como alguém termina o seu dia indo a um show. Isso ajuda também a dar um tom de sociabilidade para algo que pode ser absolutamente individual. Reforça a ideia de que a comunidade existe e persiste, ela só não pode se encontrar presencialmente. Tenta estimular comentários sobre a produção e evitar aquela incômoda sensação de estar postando para ninguém ou para um número x de pessoas qualquer.
3. Um dos problemas com lives é que se alguns grupos as fazem, não há impedimentos geográficos para comparecer. O Brasil inteiro, ou mais, está ao alcance, e isso pode nos dar, em tempos, uma sensação de excesso, de informação demais. Agora, às vezes alguma cena fica realmente agitada (creio que São Paulo e Rio de Janeiro já tiveram cenas agitadas), e ocorre de você simplesmente não ir a todos eventos (exceto a Natacha em São Paulo, existe essa lenda). Mas eu sempre gostei de ir a todos. Então eu gostaria de explicar um certo cansaço que às vezes bate com lives de outro modo.
4. A explicação é que a probabilidade de que estejamos a trabalhar dentro de casa, conectados à internet e já no computador durante o dia é grande. Ou o tempo em que passamos frente ao computador é grande ao menos, e o tempo que passamos fora de casa é bem menor. E então, no momento de terminar o dia, era muito mais contrastante ir até um show. Ver uma live significa muitas vezes permanecer no mesmo lugar no qual você trabalhou. Muitas vezes nas mesmas condições. E talvez o que seria melhor era fazer uma atividade em outro local e longe do computador.
5. Tínhamos na Seminal Records um plano de tentar melhorar as condições de escuta dessas lives, propondo que houvesse um sinal de teste sonoro ou algo similar no início da transmissão, para que o volume fosse ajustado pelo ouvinte. E que fossem sugeridas condições de preparação ritualísticas da sala, afim de tentar lidar com essa continuidade incômoda entre trabalho, interação em redes sociais, divertimento e apreciação de arte. Não conseguimos o patrocínio necessário pra levar adiante uma série de vídeos em que testaríamos a ideia. Não sei o quanto embarcaríamos nessa ideia. Muitas pessoas não exatamente gostam mas se deixam levar por essa continuidade fragmentada da vida conectada. Por outro lado, eu diversas vezes troco meu computador e caixas de som de lugar para ver filmes, o levando para a cama, ou para o tatame de EVA na sala, colocando luz de velas etc.
6. Tive uma conversa com o Marco Scarassatti no ano passado que era sobre como tentar tornar a sonoridade da apresentação via vídeo algo próprio ao vídeo. Dar uma cara de música gravada ou de música eletroacústica são saídas óbvias. Mas existem outras opções, ou ao menos, existe como pensar outras opções. Acho que no fundo, as pessoas não pensaram que valesse a pena. A ampla acessibilidade e possibilidade de participação de pessoas de regiões as mais distantes é uma vantagem. Mas o meio não é apenas um substituto temporário (espera-se) a shows, como também muito menos impactante do que uma sessão de vídeo-arte, em formato cineminha.
7. Dito isso, aí vão minhas recomendações.
Paulo Dantas & Thiago Rocha Pitta: Silêncios, assim como as montanhas, serão consumidos pela vida (eventualmente). Apresentada no Festival Novas Frequências X, uma filmagem de plano fixo de um espelho d’água. Acerta pela sensibilidade desenvolvida junto a uma duração mais esgarçada. A música elabora uma transição entre paisagem sonora dos arredores e sons eletrônicos simples, como que destilando aos poucos a cintilação do conjunto.
Leo Alves & Juan Antonio Nieto: Data. Com uma música eletroacústica densa e interessante, o vídeo nos confronta com o perturbador julgamento de um torturador assassino, da época da ditadura brasileira, mas que como outros, saiu incólume. Apresentado no F[r]esta festival de improvisação.
Também no F[r]esta houve um vídeo impressionante pela recusa da imagem conjugada através da palavra, que fala do cansaço e é de um azul situacionista, de repetições instigantes, mas contidas e melancólicas. FANTASMA (Gabriela Nobre e Bernardo Girauta): Todos felizes com nosso novo sistema de som.
Já no Frestas Telúricas (curiosa coincidência de nomes parecidos), Cadu Tenório apresentou Nightcore Nightmare, prosseguindo sua elaboração própria a partir de uma acepção muito ampla e inclusiva do vaporwave (de uma fantasmagoria cultural da internet) e com um trabalho em cima da visualidade da palavra, de jogos de mostrar e esconder muito interessantes.
IPSNIC/ICNISP (Marina Cyrino & Matthias Koole) tocam improvisos para o improfest, mas a coisa é montada por Cyrino como esquetes de cenografia caseira de um absurdo muito bem humorado, além da excelente música.
Numa produção mais elaborada, o programa Patch Notes apresenta apresenta um show de Tantão e Os Fita em um galpão, focado no último lançamento pelo QTV, Pirou. Filmagem cativante, e o trio muito entrosado, começando com o bordão já dos tempos em que vi Tantão com o do The Bosch, Acelera Deus. Mas agora, nesse último lançamento, pop, mas ruidoso e agressivo, com uma crueza controlada, acho que a música acentou, achou seu lugar preciso.
O Marcus Neves tem desenvolvido drones e em MDLS #4A, temos um road movie, um filme de estrada abstrato, em que as árvores e cabos de energia desenham passagens que se perdem no passar, não importando o destino. Muito bonito. Para a série Aos Vivos 2020, do Música Insólita.
que interessantes escritos sobre essas experiências relativamente recentes. Ao menos, recentemente ressignificadas, dado o contexto pandemico de isolamento social. Decerto, essa sensação de comunicabilidade mais imediata, ou direta, dá um desafogo no desejo se sociabilização, dá uma calor.
me surpreendi até que tenha havido essa sensação nitida, mesmo que fugaz, que você tá ali presente trocando ideia, sei lá, no fosso, no iraq…