1. Em Donovan’s Brain, livro de Curt Siodmak, o médico Patrick Cory se vê progressivamente tomado pela mente do perverso e narcisista Donovan. Patrick preservara secretamente o cérebro do milionário em um aquário, após resgatar seu corpo do local em que o jatinho particular de Donovan despencara. Seus experimentos de medicina especulativa o levaram a tal cilada. Novela adentro, já tendo perdido o controle sobre seu corpo, o médico se angustia:
“De repente, tive o terrível pensamento de que podia fazer amor com Janice! Janice era bonita. E Donovan era Patrick aos olhos dela! Se isso acontecesse, eu seria o espectador! Traído por meu próprio corpo! “
2. Em uma das cenas bizarras de Kaiba, anime de Masaaki Yuasa, a contrabandista Parm clona sua consciência. Enquanto esconde a consciência de Kaiba no hipopótamo de pelúcia Kaba, ela se aproveita do garboso corpo juvenil do protagonista e lá instala o seu duplo, afim de transar consigo mesma. Planeja passar a viagem em plena luxúria, mas se excede e seu original explode. É que duplicar a personalidade sempre leva a cópia a tentar matar o original. Primeiro, o corpo é destruído atiçando um orgasmo fatal. Depois, com medo de ser apagada, a cópia procurará eliminar a alma original, a vendo agora como o pai que é preciso matar, depois de tê-la visto como a mãe a qual era preciso conspurcar.
3. A casa das luzes azuis, do conto Burning Chrome, de William Gibson, é um salão de marionetes. Pois as prostitutas são marionetes de carne: garotas tornadas inconscientes, em um estado próximo ao do sono REM, mas com reflexos sexualmente condicionados. Rikki aluga assim seu corpo, em um turno de 3 horas desmemoriadas.
4. A situação no filme In Time é incômoda, embora o próprio roteirista e equipe dissimulem que não. Os cidadãos têm seu envelhecimento freado aos 25 anos de idade. Aqui, literalmente, tempo é dinheiro, isto é, pessoas usam tempo de vida como moeda. Assim, sociedade capitalista como a nossa, há inúmeros daqueles que precisam trabalhar no dia para conseguir o tempo de vida necessário para trabalhar no outro. E vivem a correr. Mas e os ricos? Haverá muito tempo de vida para eles. Tempo suficiente para que os progenitores vivam com seus rebentos, em condição de igual vitalidade. E daí torna-se fácil imaginarmos as perversões de uma família em que os filhos ganham de herança enormes quantidades de tempo dos pais. A devassidão dos opulentos, quando a depravidade edipiana é assim estimulada ao extremo. Coisas que não estão no filme, mas que estão na ideia que o filme mobiliza.
5. No conto O mercador e o Portal do Alquimista, de Ted Chiang, o paradoxo do loop temporal intervém, temperado a lá 1001 noites. É que há uma máquina do tempo Einsteiniana, que comunica o momento da sua inicialização com aqueles de sua permanência no tempo-espaço. O portal arqueado, 20 anos no mesmo local, é uma passagem para o momento de sua criação, no mesmo local, duas décadas antes. Raniya, a mulher do Hassan maduro, vê o mesmo conversando com um sósia novo, que então descobre ser o Hassan do passado. Após ajuda-lo a se livrar da máfia, mal pode esperar pelo sexo acolhedor e habilidoso. Mas se decepciona. Como poderia esse jovem de corpo tão esbelto ser o mesmo rapaz que na mocidade a deixava extasiada? Traindo mais vezes seu marido com seu futuro pretendente, um tanto verdoengo, acaba por mostrar-lhe o caminho das pedras. Até que finalmente entende. Mulher coroa ensina garoto.
6. O relógio da fábrica que o sistemático Gleich tanto preza para de funcionar e ele perde a hora. Ao chegar em casa surpreende a mulher a trai-lo com seu doppelganger, um duplo de si. A Hora dos Doppelgängers é a hora de instabilidade e duplicação; de descolamento e tempo fora do eixo, e o autor Jaime Azevedo explora muito bem isso, num conto exíguo. “A traidora foi capaz de amar o outro dele mesmo como nunca gostou do original que a merecia.” Assassinado o seu semelhante, a mulher é esquartejada. Mas o duplo dela comporá de novo o casal, quando a conjunção duplicadora do sexo e da morte arrefecer. O paranóico sempre se considera o original e só a rotina rígida o alivia.
7. No filme Possessão, de Andrzej Żuławski, Mark contrata um detetive afim de desvendar os adultérios da sua esposa Anna, que pede o divórcio. Ela tem um amante humano, sim, mas o que é lúgubre é sua relação com um demônio em estado de desenvolvimento, do larval a um menecma perfeito de seu marido. O sexo em uma fase de transição pode ser confuso e perturbador, e talvez seja necessário matar o passado para se refazer no futuro. De todo modo, a possessão é dupla: de Anna, em surtos psicóticos, histeria, numa explosão do que estava recalcado, na sexualidade que transborda, e de Mark, que tem sua identidade roubada pelo demônio que o renovará pós-morte.
Essa casa das luzes azuis lembra a ideia do livro “A casa das belas adormecidas” do Yasunari Kawabata.
legal lucas. vou atrás. recomendo muito esse livro de contos do william gibson, que se situa no início do cyberpunk, um pouco antes do neuromancer. adicionei um sétimo exemplo, que tinha esquecido também, dá uma lida.
Legal, cara! Valeu pela citação! Melhor ainda aparecer ao lado de Possessão, um filmaço.