O Túmulo dos Vagalumes

Sabemos que o protagonista morrerá como um morador de rua, morto de fome e abandonado, em meio a tanto outros. O filme faz questão de assim começar: estaremos vendo uma jornada que leva ao funesto; não apenas ao trágico, mas ao triste. Entretanto, o que leva a tal desfecho? Parece programática essa pergunta para o longa de Isao Takahata.

Uma primeira resposta seria: ora, a segunda guerra mundial. A partir daí, poderíamos qualificar: os desejos imperialistas de um Japão fascista, ligados a incompetência militar de realizá-los e uma defasagem técnica e tática em relação a inimigos belicosos e impiedosos, condensados na figura dos Estados Unidos. Embora essa seja uma resposta, não é a que o filme dá, mas sim a que ele pressupõe como condição para a outra resposta. Civis vivendo sob constante ameaça de bombardeio levam a mortes trágicas e brutais, mas não tristes (a situação é triste, mas a morte é de uma brutalidade obnubilante).

É verdade que poderíamos culpar a morte por problemas de inanição e a pobreza que leva a não termos acesso a mantimentos como resultado da guerra. Mas isso seria fazer vista grossa ao tema do filme: como lidamos com essa situação de guerra? E para responder a tal é preciso lembrar de algumas cenas. Creio que para o presente propósito, três bastem. A cena em que a tia empedernida se recusa a fornecer bolinhos de arroz aos dois hóspedes por eles não estarem ajudando nos esforços de guerra, oferecendo-lhes apenas sopa de arroz. A cena em que, após Seita e Setsuko mudarem para um abrigo abandonado, um agricultor, após dizer não poder vender comida, pede para Seita engolir seu orgulho e pedir novamente ajuda à sua tia. A cena em que, antes de mostrar um Seita absolutamente debilitado, vemos, no pós-guerra, jovens mulheres ricas revisitar uma casa, em clima de veraneio.

A pergunta que então me ocorre é: será possível viver uma boa vida em meio à situação da guerra? A resposta que temos é de que não. Será preciso esperar o conflito acabar. A segunda: será prudente tentar viver uma boa vida, mesmo em uma situação deplorável de guerra? Acho que essa é a pergunta que nos leva à resposta almejada. Pois é no esforço de uma criança crescida de preservar a possibilidade de uma boa infância para sua irmã, aos moldes que ele possuía, dentro de uma vivência de classe média, que leva ao abandono, à desconexão, à fatalidade. É a recusa de entender o contexto deplorável e inserir-se como um membro funcional dentro dele que causa a tragédia. E qual é esse contexto? Dizemos: de um bairro de classe média, cuja coesão social já está permeada demais pelo individualismo para realmente formar uma rede de salvaguarda. De uma sociabilidade que já não sabe lidar com os problemas de todos e da comunidade, em um entendimento inclusivo e totalizante.

E essa falta de coesão leva ao fato de que o próprio Seita, um garoto de 14 anos, deva tomar decisões essenciais para sua sobrevivência e de sua irmãzinha. E ele as toma segundo o que aprendeu. A irmã precisa ter uma infância. Há o dinheiro da família. O pai voltará logo mais. O resto da família não responde, então é preciso esperar. Podemos até dizer: ele teve esperança demais, e resolveu viver com esperança, ao invés de viver ingerindo (de preferência, homeopaticamente) o desespero. Faltavam-lhe informações, e ele agiu conforme acreditava ser o melhor. E que criança decidiria pela segunda opção, sem uma orientação rígida e repressora por parte de um adulto?

A beleza triste do filme então surge dessa articulação entre a alternativa infernal – a vida desafortunada ao invés da morte por indigência -, e uma visão humanista trágica, de que seria preciso, contra os fatos, proteger a infância.

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