O modelo de Russell da Terraformação de Marte: em apuros

Não se deixem convencer de que a trilogia da colonização de marte de Kim Stanley Robinson é meramente uma das grandes sagas da ficção científica: estou lendo o segundo – Green Mars, após ter lido ano passado o primeiro – Red Mars, e está já entre as melhores coisas que já li na minha vida. Testemunho da capacidade incrível do autor é sua capacidade de combinar uma pesquisa extensa e impressionante sobre diferentes áreas do conhecimento humano (o cara é um sábio) com personagens cativantes ou ainda irritantemente realistas, e o arco de um Sax Russell sob uma outra identidade traz tanto apego ao personagem, que parecia tão apagado no primeiro livro, que o desfecho do capítulo me deixou verdadeiramente apreensivo. Isso talvez não leve à seguinte questão, porque ela possivelmente não é importante no prosseguimento do livro (vamos ver…), mas ainda assim, fiquei pensando:

Como lidamos com a obra incrível de um ser humano que passou, depois de um evento, a ser considerado mau? A maioria das pessoas parece desconsiderar o fato de que ao usarmos expressões sobre a obra incrível e nossa incapacidade de separá-la do caráter do autor, já estamos separando ambos. Atesta a isso que nunca expressamos o problema veementemente no caso de obras dispensáveis, ruins, irrelevantes. Quando sanções são aplicadas à atuação desses autores (como quando descobre-se que um acadêmico, artista ou cientista está envolvido em casos de abuso sexual), essas visam punir a pessoa, não lidando com a obra, que de todo, poderia ter sido feita por uma outra pessoa ou versão idônea da mesma. Pois isso nos leva a crer que existe a liberdade humana: as situações de uma vida devem ser tomadas como podendo ser outras dependendo das atitudes tomadas… A obra afinal, é incrível, não? Digamos que ela era: a ação mancha a obra, fornecendo possíveis interpretações da mesma que maculam o apreciar. Mas daí é preciso avaliar o que é esse apreciar – quais suas modalidades e qual interpretação e de que modo esta macularia a obra. E levar em conta, pode significar: vejam Lovecraft, ou Tolkien – mesmo que seja possível ler a obra manchada pelo lado reacionário, xenófobo e racista, a obra também pode não ser lida por essa via. E levar em conta pode significar estar aberto ao problemático – a existência de interpretações que ligam vida e obra e a interpretações que libertam a obra, que entendem que se certas tendências pessoais ali se coagulam, também outras o fazem – sociais, mas também, tendências de ruptura, abertura, liberação.

No caso de Sax, e porque eu não sei ainda o que se segue, fiquei pensando como as transnacionais podem capitalizar uma narrativa de crimes para tentar com isso manchar seu modelo de terraformação? Um modelo de uma personalidade que sempre buscou um trato científico, maximamente isento quanto aos grandes problemas de finanças e política. Ser isento de política, querer o bem, de forma sensata e comedida, a partir de uma convicção, é verdade, horrenda para Anne, de que é preciso terraformar para que a superfície seja habitável por animais… essa falta de pressa, de busca por poder e dominação financeira, talvez isso seja justamente ideológico. Coisa de vermelhos, de revolucionários. Posições que levam ao crime, no nível individual. Talvez uma grande transnacional possa operar assim: dizer que as obras, as grandes teorias e planos estratégicos-científicos, tenham autores e que assim se conectem inexoravelmente com o caráter daqueles. Porque uma transnacional pode cometer muito mais crimes, mas sua estrutura abstrata não fornece uma cara humana a quem culparmos.

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