1. Considero que a personagem Konata, do excelente anime de comédia otaku (desajustado, nerd) Lucky Star, é modelada em um homem e não em uma mulher. É uma hipótese. Seus gostos são exatamente aqueles de um otaku do tipo macho, mas importados em uma garota quase super-fofa. Parece-me construída para gerar identificação no público homem. Não que não existissem mulheres otaku, como bem mostra Kinsella (o excelente capítulo 4 de Adult Manga), mas tenho essa impressão pela predileção da personagem por jogos de conquistas sexuais heterossexuais, comentários maliciosos, uma postura largada esculachada frente à vida social, além de um ar um pouco diferente daquele emanado pelas outras garotas do círculo de amizades da série. Contrastem com Mio, da outra obra-prima do estilo, 日常 (Nichijou): ela desenha pornografia de caráter homossexual masculino, é mais preocupada com o social, possui claramente um interesse sexual terreno, ligado à ideia de relacionamento, desenha manga ao invés de simplesmente consumir. Ademais, Konata tem um carisma interessante, ao permitir uma identificação com distanciamento, favorecendo que os fãs homens tomem para si a possibilidade de imitações do fofo-garota, garantindo ao mesmo tempo um certo distanciamento, do ridículo auto-consciente (na esfera do binarismo de gênero).
2. Conversando mais ou menos sobre isso com meu amigo Paulo Dantas, ele comentou como o filme Top Gun: Ases Indomáveis seria essencialmente uma história homossexual masculina. Mas que um produtor deveria ter intervido de modo a substituir o amante Charlie, por uma mulher. Como uma solução de compromisso, afim de agradar o escritor do enredo, essa mulher poderia também ser chamada de Charlie, daí o nome Charlotte.
3. Já o primeiro filme 300 (de Esparta) sofre da inserção, aparentemente também para atender à diversidade mínima de gênero suposta, de uma rainha, acompanhada de uma intriga amorosa. Em um filme basicamente construído como um monte de homens fortes machos em combate contra um rei andrógino, esse mínimo, além de prejudicar a consistência de esteróides do filme, acaba por soar como: “taí, vocês pediram que tenham mulheres protagonistas, colocamos uma, no lugar possível para uma delas”. E o lugar possível é o de esposa. (E peraí, nós não pedimos nada disso, eu só queria ver um filme cheio de ação e com construções visuais incríveis). Na sequência, em que pese as lindíssimas cenas de batalhas marítmas, vemos 4 mulheres, sendo 2 delas apenas figurantes concubinas de um general persa. A esposa, lutando mal (em termos coreográficos), para vingar seu marido. A outra, ocupando o lugar reservado à todos os marginalizados: o do vilão. Mas, mesmo que Artemísia seja uma grande vilã, e que a cena de sexo do filme seja positivamente perturbadora, só imaginem o quanto o filme não ganharia se o vilão fosse um homem grego que, contrariando uma possível prática persa, praticasse a sodomia. Imaginem o quão perturbador seria a mesma cena de sexo, entre dois homens, dois comandantes inimigos.
4. Outra estratégia imaginativa seria aquela de pensar como esses dois filmes seriam se uma abordagem estilo futurismo russo do filme Tropas Estelares fosse adotada: mulheres e homens em pé de igualdade, lutando pela Grécia. Talvez o grande problema não seja que os homens tenham mais propensão à força bruta e constituição muscular que as mulheres, mas que a mistura de ambos colocasse uma tensão sexual constante na situação de guerra. Mas, justamente, essa tensão deveria estar presente entre os homens, e a colocação de uma ou duas mulheres nos filmes está lá apenas para redirecionar a sexualidade recalcada, neutralizando-a. Contrastem com um filme em que essa tensão é focal: Querelle, do Fasbinder, baseado na novela de Jean Genet.
5. Tanya, da Saga de Tânia a Má (幼女戦記, também associado ao título “as crônicas militares da garotinha”) é nada mais nada menos que um salaryman (サラリーマン), um empregado neoliberal mesquinho na meia idade que, assassinado por alguém o qual prejudicou, e também por ser ateu, é reencarnado por Deus em um mundo no qual será forçado a acreditar na existência do todo poderoso. E isso porque Deus realmente existirá, naquele mundo, no sentido usual da palavra, efetivamente conferindo poderes sagrados. Assim, nosso burocrata sociopata vai ser obrigado a largar sua idolatria ao capitalismo, ao deus-dinheiro, e galgar, agora como garotinha com poderes divinos, e muitas vezes contra seus planos iniciais, a escadaria da hierarquia militar. Na canção de fechamento (ED), entretanto, temos uma Tanya vista como que pelos olhos da fanart, em típicas paródias que a erotizam, deixando-a mais velha e voluptuosa… e ainda flertando com o tropo, válido tanto para otakus homens quanto para mulheres, do soldado (soldada) sedutor (ainda mais quando um imaginário alemão 2GM é invocado, no caso dos japoneses). O que aliás, pensando na alma presa dentro do corpo, é um tanto perturbador. (poder-se-ia pensar, quantos tabus conseguimos quebrar em uma imagem?)