ゴジラ登場! É Hora de Fazer Reuniões

*** Texto por Henrique Iwao, seguido de comentários por Paulo Dantas. ***

Mesmo sendo uma obra prima séria do cinema, pouca gente viu o primeiro Godzilla, de 1954, do Ishirou Honda (本多猪四郎). Vou dispensar os imensos elogios que faria ao mesmo e só dizer: assistam ao filme. Existem, entretanto, fatores históricos para que não seja tão conhecido. Os Estados Unidos o proibiram durante um bom tempo, e na versão para a sua clientela, mutilaram o filme, tirando qualquer referência ao fato de que o monstro teria surgido do lixo atômico, e estaria intimamente ligado às bombas atômicas usadas por eles contra o Japão, além dos experimentos atômicos subsequentes à segunda guerra mundial, como o do atol de Bikini [1]. Godzilla (‘gojira’ em japonês), seria uma palavra valise entre gorila e kujira, gorila-baleia. Entretanto, durante sua concepção, adquiriu escamas que pareciam a pele de marinheiros expostos à radiação atômica, e sua cabeça foi ajustada para aparecer numa cena icônica no formato de um cogumelo nuclear.

Assim, o filme nasceu intimamente ligado a questões políticas e profundamente imerso em um contexto social específico. Não é, claro, o que lembramos ao evocarmos outros produtos audiovisuais da franquia, onde desfilam Kaijus (monstros gigantes) como Mothra, Mecha-Godzilla, King Ghidorah e até o próprio King Kong. Entretanto, o caso é outro quando do novo filme do Godzilla, literalmente Shin Gojira (シン・ゴジラ), “Godzilla Resurgence“, de 2016, dirigido por Hideaki Anno (庵野秀明).

O filme atualiza o primeiro, e faz menção aos recentes desastres japoneses, da usina nuclear em Fukushima, do tsunami e terremoto em Touhoku. O que eu gostaria de notar é, entretanto, algo comum aos dois filmes. A ênfase em cenas de reuniões. De fato, o que é que devemos fazer quando alguma ameaça de desastre é revelada? Se o Gojira aparece, se um 怪獣 surge, se um grande perigo se delineia? Parando para pensar é difícil formular alguma alternativa. O que deve ser feito: reuniões.

Por que como é que vamos lidar com algo que vai do não inteiramente conhecido ao desconhecido, e que eventualmente necessitará de uma mobilização de forças imensas e colaboração entre inúmeros agentes, sem reuniões? Quando Godzilla aparece é preciso delinear um plano. É preciso avaliar os riscos, determinar os problemas, compreender a ameaça, estimar os recursos disponíveis, negociar parcerias, articular conexões institucionais, montar equipes e grupos de trabalho, instituir canais de comunicação, coordenar fluxos de trabalho… Gerenciar o tempo que conecta a pesquisa necessária às propostas de ação, às ações, e ao dano colateral sofrido. E tudo isso paralelamente a tanto planos mais imediatos, emergenciais, como os de evacuação e isolamento, com suas demandas próprias, quanto contra-planos, lunáticos ou maldosos, advindos de oportunistas, ignorantes e facções opositoras inescrupulosas. Além de planos de segurança que vão garantir uma menor disrupção do processo como um todo [2].

Mas é claro, há várias maneiras de fazer reuniões. E há vários níveis de capacidade industrial, científica, política. Enfrentar um grande monstro, seja ele oriundo direto dos desequilíbrios provocados pelo humano (os kaijus são intrusões de gaia), seja ele algo mais difícil de determinar, exige grande força institucional, aliada a atuações individuais inspiradas. O que Anno constrói no seu filme é a crítica a um formato engessado, que dificulta a flexibilidade e comunicação em rede necessária à solução de problemas complexos. Se voltarmos ao primeiro Godzilla, as coisas pareciam mais simples. Era preciso consultar cientistas e especialistas. Organizar ataques militares coordenados para estimar a resistência do monstro, tentar acuá-lo. Entretanto, lá já é claro. É preciso também de genialidade. As batalhas são perdidas. É necessária alguma sacada especial; um indivíduo genial que possibilite uma solução inaudita. E sabemos: a probabilidade da existência de um sujeito assim é maior em meio a certos ambientes, em meio a instituições pujantes e um meio cultural vivo. Ou então, que seja, dependemos da boa vontade e da sorte, de singularidades improváveis.

Voltando ao filme mais recente, vemos o diretor do mesmo articular uma crítica arguta à política japonesa atual. É que precisar de reuniões não significa perpetuar o estado atual do capitalismo mundial, junto à cultura japonesa de culto aos mais velhos e a uma hierarquização excessiva, e dependência de centralização de comando descomedida. E o que é esse estado atual do capitalismo? Ao meu ver, Graeber o disse. Existe uma quantidade enorme de intermediações inúteis e entraves arbitrários embrenhados no sistema, que só se acentua quando da crise do emprego e aumento da desigualdade social na figura dos super ricos [3] [4].

Como fortalecer instituições mas escapar dessas armadilhas? Como estabelecer linhas de comandos consistentes, mas flexíveis? Com uma espécie de lagarto radioativo gigantesco destruindo a cidade, precisaremos mais do que nunca nos reunir para tentar realizar essas melhorias. Mas enquanto isso, é preciso pensar sobre como nós vamos nos reunir. Nesse momento em que a divisão entre o teórico e o prático perde sentido. O momento da ameaça total [5].

***

[1] vide Peter H. Brothers: Japan’s Nuclear Nightmare: How the Bomb Became a Beast Called ‘Godzilla’.

[2] Revendo o filme esses dias, como não estar contaminado pela crise coronavírus? Penso na hidroxicloroquina. E na entrevista do Loyola Brandão sobre seu último livro, quando menciona desobediência civil. Ou na reação do Japão.

[3] A tal sequência em que se cogita o disparo de armas de fogo no Shinagawa Kun: o piloto do helicóptero vê um civil e pergunta a um superior se deve prosseguir; o superior pergunta à ministra da defesa se deve seguir; a ministra da defesa pergunta ao primeiro ministro se deve seguir. Ele cancela a operação por conta dos civis (detalhe: mais adiante no filme, na operação final para congelar o Gojira, aventa-se a possibilidade de adiá-la porque a evacuação da cidade não foi completa. Mas a operação é autorizada pelo responsável ‘mais jovem’, que recomenda a notificação de toque de recolher para os cidadãos remanescentes na cidade. Digo isso apenas para nuançar o comentário sobre o estado atual do capitalismo. Estou um pouco no escuro aqui, mas uma das sensações que tenho é a de que ‘os mais jovens’ são movidos por ambições políticas extremas, e não somente por um desejo de ‘resolver a situação’).
Há um outro aspecto da coisa que eu acho bastante interessante nesse filme: sabemos que a atual constituição japonesa atribui apenas uma função cerimonial e simbólica à figura do imperador. Se não me falha a memória, não há menções ao imperador no filme (ou há apenas uma, ligando-o não somente à derrota na segunda guerra mas à perda de vidas em solo nacional por conta de uma ‘decisão arrogante’ – o ataque a Pearl Harbor). De toda forma, o primeiro ministro não se reporta a uma ‘instância superior’ para desautorizar o lançamento do míssil.

[4] Bom, me ocorre algo e vou escrever por aqui (mesmo que me sinta já escapando do tema do seu texto, a necessidade de fazer reuniões): a única instância superior à democracia japonesa mencionada no filme é o próprio ‘God’ zilla (além do trocadilho que é o nome do filme, em Japonês: ‘Shin’ [シン] é fonação do kanji para ‘novo’, mas também o é do kanji para ‘divindade’). Há um momento no filme que entendo como uma citação a Akira, onde uma multidão grita pelo Deus Godzilla. De novo, a contaminação pelo coronavírus: não sei se você viu alguns dos vídeos que circularam pela rede das orações nas ruas durante o ‘domingo de jejum’ convocado por Bolsonaro.
Há, também, uma outra referência interessante possível: lembro de ver, em um doc sobre o Ryuichi Sakamoto, imagens de uma manifestação pós-fukushima, em que ele falava ao megafone, etc. E parecia genuinamente feliz com uma possível ‘mudança de atitude’ no Japão, talvez de uma postura mais passiva politicamente (da população média, creio) a uma postura mais ativa. Daqui de onde vejo, isso parece ter durado pouco, mas não saberia dizer ao certo. De toda forma, e apenas baseando-me na memória, o local onde a manifestação acontece me parece o mesmo local em que cidadãos em Shin Gojira clamam pelo deus Godzilla. Seria um acerto impressionante, mas é até possível que seja assim já que manifestações têm, em geral, locais tradicionais de ocorrência.

[5] Eu não consigo deixar de imaginar fotos do Mandetta e equipe ilustrando o seu texto, só que com legendas estranhamente apontando para o filme.

***

BÔNUS: O CASO DA CAUDA

H. e sobre essa cena do shin godzilla, ao final, algum pensamento?
P. Sim, alguns. É a cena de que mais gosto no filme e há muito dito sobre ela na rede:
1. seria uma nova mutação do Gojira, a quinta fase. Inclusive aguardou-se muito um Shin Gojira 2, muito por conta de entenderem esse final como um cliffhanger. A produtora notificou que não haveria continuação, apesar de terem considerado a hipótese. Há sketches, inclusive, dos rostos das criaturas que brotam da cauda. Aparentemente havia a possibilidade de essa mutação ter sido parte já desse mesmo filme, e não de uma continuação. 
H. Quando eu vi eu só pensei – o rabo dele é um portal do inferno — é um local de aglomeração de sofrimento humano, etc.
P. 2. Há teorias. A teoria de que há uma boca no fim da cauda do Gojira, de que essa boca e as criaturas humanoides são provenientes do dna do professor (Goro Maki) que desaparece no barco, no começo do filme. Há pré-roteiros que previam a aparição de um novo Gojira, brotando do interior da criatura.
3. O que eu imagino, contudo, é parecido com o que você imagina, mas com nuances. A cauda não é um portal do inferno mas sim a ‘natureza humana’. O Gojira é produto dessa natureza e algo com o que temos que ‘aprender a conviver’. Esse ‘aprender a conviver’ é a cauda. A criatura congelada é uma espécie de ‘busto comemorativo’. Mas a celebração não é festiva e sim aquela ligada ao ‘cair a ficha’. É como propor o ‘antropoceno’.
H. Celebração sofrida de que a humanidade gera sofrimento mas com esforço, também o supera (mas nunca completamente). Tipo isso?
P. Acho que tem a ver com assumir as responsabilidades. ‘Ok, temos que conviver com esse troço que somos nós mesmos’. Sobre o “mas nunca completamente”: não é descartada a possibilidade do Gojira acordar da hibernação forçada. E o que se comenta a respeito disso é que o contagem regressiva para o bombardeio está apenas pausada. Teme-se o novo bombardeio. Mas e o Gojira?

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