Preparando o peixe

Há uma cena, no clássico do pastelão elegante Playtime, de Jacques Tati, que previsivelmente me deixa nervoso: a preparação do peixe, quando da inauguração do restaurante dançante chique. O filme é repleto de glamour equivocado, essa categoria estética que Tati identificara no cinza vítreo da década de 60. Ali há a organização pela organização e a economia de meios pela economia de meios, isto é, há uma organização disfuncional que mais compartimentaliza do que realmente seleciona, e a economia de meios (cores, formas) entra com uma rigidez que contrasta com as necessidades mais maleáveis dos usuários, de conforto e utilidade real. São os gadgets, talvez no seu auge, capturados em sua essência – praticidades absolutamente ineficientes. Mas e o peixe?

O peixe é preparado na frente daqueles que o consumirão, estando em uma bandeja. Pitada de sal, pimenta, filete de azeite. E depois, acender o fogaréu. Mas o processo nunca é completado, os garçons passeiam desordenadamente e se comunicam muito mal, se é que o fazem: o próximo recomeça o processo do zero e o peixe desmemoriado vai se tornando cada vez mais condimentado. Como se não bastasse, e o filme é uma mistura de exagero com sutileza, característico do cineasta, e os consumidores também giram, trocam de mesas, esquecem de seus pedidos, ou nem o fizeram, como se tudo isso fosse o normal. É verdade que Tati nos convida a pensar sobre a globalização, no sentido que Jameson formulará mais de uma década depois – a universalidade tipicamente estado-unidense – com uma Paris para turistas yankees que nada mais é que o efeito da tecnologia do american way of life sob corpos que estariam melhor se realmente engajados nos trabalhos e processos que estão incumbidos. Mas se isso é verdade e se a mensagem é que a insipidez será resolvida pelo caos festivo e pelo calor dos encontros, ainda assim meu nervosismo se impõe: uma tarefa deve ser feita em uma certa ordem, do início até o fim. O peixe estará horrível e de alguma forma isso me afeta mais do que os outros espectadores – a lembrança da situação do fazer com desleixo.

Não que eu não sinta isso quando as pessoas realizam certas tarefas corretamente e com atenção: o problema é que o modo desatento e parcial seja a norma a qual minha expectativa gravita. Comentei com Carol como um sentimento similar, mas mais intenso me acometia quando intérpretes tocavam minhas composições musicais. Nada pior do que observar a composição, esperando o peixe.

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