Zero e os Comuns

Ignácio de Loyola Brandão diz da fatura de Zero (1974), seu romance da época da ditadura, que começou a juntar todas as notícias censuradas do jornal no qual trabalhava e guarda-la nas gavetas das mesas de redação. Quando ficaram cheias delas, começou a guarda-las em caixas de supermercado, e empilha-las. Tinha juntado um monte e foi então as reescrevendo, parodiando aqui e ali, colando pedaços, e construindo a colcha de retalhos que serviria para erigir tanto o que concernia a história quanto, o que é o mais interessante do romance, o ambiente (refletindo a confusão e caos nacional). Queria fazê-lo um retrato de tudo que acontecia no período.

Nos fragmentos, há pérolas como a Odisséia no Espaço, jornada burocrática de Carlos Lopes por repartições infindáveis (há um episódio semelhante, mas menos mórbido, nos 12 trabalhos de Asterix); a lista interminável de documentos exigidos para qualquer atividade ou confirmação de situação legal (“José terminou levado para a Delegacia. Faltava um documento: o da frequência escolar dos filhos. – Mas não tenho filhos.” (como não? deveria.)); a aparição inusitada de vocabulários científico-médicos, em meio a descrições que os acolhem como uma mensagem – “não há mais espaço para o conhecimento ponderado”; as propostas para o carnaval (homens e mulheres separados, cada um em um salão, mantendo a devida civilidade); os números dos decretos:

AS SAGRADAS DETERMINAÇÕES

O Governo queria acabar com o Boqueirão: justificativa: o povo está se divertindo demais.
“É preciso que as pessoas fiquem em casa com as famílias, junto à mulher e os filhos.”
Determinação Sagrada 345676590ºf

As gravadoras têm um mês para liquidarem os estoques de músicas profanas. Dentro de trinta dias serão permitidas apenas músicas sacras e as marchas patrióticas.
Determinação Sagrada nº 5463789j 78a

Mas mesmo havendo um retrato de tudo, ainda assim há uma história. Que seria a história de um José ninguém e uma Rosa à toa, não fosse justamente esse ambiente que espreme uma vida ordinária e boba em situações que são apenas banais dentro daquele ambiente. Ou então, que não deveriam nos soar como banais, apesar de ainda hoje poderem ser recebidas assim. Há precariedade demais, violência demais, repressão demais, licenciosidade demais, regras demais, e gente demais quebrando regras. O cinismo da realidade é refletido no sarcasmo do texto. De modo que nada mais apropriado que, por um lado o número de homens-aberrações multiplique, filhos da precariedade, e fonte de entretenimento popular (Boqueirão). E por outro, que os revolucionários sejam justamente os comuns. Se ser ordinário é não se destacar como aberração, mas sofrer a pressão do ambiente; qualquer desvio, vontade, descuido – e torna-se terrorista. Ser normal, cada vez mais passa a ser coisa de comunista. Há um inchaço do aparelho repressor e da situação de desigualdade social que deseja expandir-se e vai assim excluindo e excluindo até que qualquer ação de bem estar, qualquer civilidade concreta, passe a pertencer ao conceito de comunismo. No espírito que nos foi deixado de legado, do exército para a polícia militar: combater o inimigo externo, protegendo o povo é transformado em combater o inimigo interno, o povo, protegendo a nação.

Salve os Comuns, terroristas da América Latíndia. Ou então nos fodemos de verdeamarelo.

Post criado 123

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

Posts Relacionados

Comece a digitar sua pesquisa acima e pressione Enter para pesquisar. Pressione ESC para cancelar.

De volta ao topo