Interpretose! A catatonia de Dougie Jones

A teoria da ação (ou ao menos, a que subscrevo) diz que os animais tem uma intencionalidade derivada. Isso quer dizer que se um cachorro faz algo, atribuímos intenções a ele apenas de modo secundário, a partir daquela que atribuímos a humanos, diluindo-as. Existem mais limites para o que podemos esperar de um cachorro. E ao que podemos responsabilizar o bicho. Afinal, não podemos perguntar a ele as razões, darmos as nossas em resposta, nem inteiramente imputar responsabilidades por ele ter feito algo, xixi no lugar errado, comido um pombo, te sujado de pelos, latido na madruga etc.

Agora, podemos atribuir intenções sempre, a todos seres humanos? Talvez a questão pertinente seja a mais efetiva: fazemos isso a todos humanos, o tempo todo? Ou há aqueles que são café com leite no jogo de dar e pedir por razões? As crianças, por exemplo. Os bebês, que nem a linguagem requisitada possuem. Ou aqueles cognitivamente desabilitados de alguma forma, momentânea ou perene. Certo. Mas o que tem isso a ver com a terceira temporada de Twin Peaks, série de Mark Frost e David Lynch, agora dirigida apenas por Lynch, ainda bem.

É que Douglas Jones, antes um tulpa, ser humano artificialmente criado (por forças místicas ou meditações intensas), agora é a identidade que o David Cooper real, o agente do FBI que finalmente deixa o alojamento negro (black lodge) depois de duas décadas e meia, adquire momentaneamente. Mas saído de um universo espiritual para o mundo humano, Cooper não acorda. Vive ainda não-desperto, catatônico, inerte, cognitivamente incapaz inclusive de conversar. Mas ele, como um papagaio (ou como o Barbosa da TV Pirata, mas sem a lascívia), repete a última coisa dita, inclusive na entonação. Perguntamos então: deve ser tratado como tendo intenção das coisas que faz em que nível? Aparentemente devia-se tratar o tulpa como um ser humano para todos os fins da vida cotidiana prática, mesmo com episódios de estranheza. Na maioria das vezes, ele podia ser tratado como tendo razões para dar sobre as coisas que fazia, e responsabilidades a receber e a atribuir. Mas e agora, este senhor Jones? Este, para o qual o apelido Dougie soa convenientemente muito próximo de doggy, cachorrinho.

Acostumados que estamos em considerar que um adulto aparentemente saudável tenha intenções e julgue nossas intenções, pode ocorrer de derivarmo-lhe intenções que este não tem. Algo análogo ao que fazemos com animais. Mas para valer, porque pressupomos reciprocidade. Derivamos do sonâmbulo quando o consideramos estar em vigília que ele entenda o que dissemos e atribuímos; que ele esteja também julgando o que julgamos e atribuindo a nós responsabilidades. Ao fazê-lo, na falta de um jogo articulado de argumentos e deixas mais ou menos consistente, colheremos outros elementos. Mas Dougie tampouco fornece expressões faciais e um gestual que possa preencher as lacunas. E suas locuções são quase como latidos. São manifestações. Mas ser uma manifestação não é suficiente para implicar comunicação. (E ele nem possue algo como um rabo cujo balançar indica um estado que possa ser aproximado de um sentimento humano).

Como ser humano inerte exposto à nossa necessidade de interpreta-lo, Dougie fornece o que parece ser apenas um grande vazio, um convite ao preenchimento. E assim os outros personagens projetam significados afim de tratar seu comportamento como significativo, seus afazeres como ações e seu laconismo como revelador de razões implícitas. Completam mentalmente suas frases. É verdade, quando esse convite ao preenchimento dá sinais de ser insuficiente, a luz verde mística o guia. Ele é afinal um protegido dos deuses. Entendê-lo errado, entendê-lo como precisando ser entendido, levará à sequência de ações corretas por parte dos outros.

Sofrer de interpretose, para o bem. O quanto algumas imagens de Twin Peaks não trazem justamente um problema análogo? Imagens que não tem propriamente um significado fixo, mas não perdem seu caráter simbólico. Cujo mistério tem esse caráter duplo: de um lado, o vazio. Do outro, uma funcionalidade dentro da narrativa. Dentro do enredo. Mas o quanto este é também um tanto vazio, feito de caprichos e formulações vagas, as quais devemos estar sempre completando e projetando sentido. Ou inutilmente buscando um significado ou esperando por um esclarecimento.

As três garotas do cassino, de vestido de salão de festas rosa, estão lá para confirmar esse tropo. São mulheres tornadas imagens evocativas. Mas se sustentam mal: como personagens que se querem imagens de cinema dentro do universo ficcional (ou que são requeridas o serem), mostram que querer ser uma imagem não é suficiente. Seria preciso que todo o entorno, e inclusive a decupagem das cenas, as apoiasse enquanto tal. Ademais, Candy é uma recepcionista que está sempre fazendo e dizendo bizarrices, trazendo assim de modo mais palpável a ideia de incongruência intencional. Pois os próprios irmãos Mitchum o indicam: esperam sempre outras coisas dela, e ironicamente, são incapazes de ler suas ações (o que reforça a posição estranha do Dougie falso).

Não pararei por aí. É importante notar o quanto somos levados à interpretose também porque interpretar demais, projetar significados e intenções demais pode ter consequências negativas. Relacionamentos amorosos estão cheios disso. Mas imaginemos outro caso. Um sujeito completamente incompetente é incapaz de perceber-se como incompetente. É um fenômeno cognitivo chamado de efeito de Dunning-Kruger. Quando este sujeito ocupa um cargo importante de chefia, quiçá de dirigente da nação, fatalmente agirá de forma errática, idiota, ignorante. O quanto o que simplesmente seria uma idiotice, uma burrice ou mal caratismo tosco será reinterpretado como tendo algum fundo de verdade, fruto de uma estratégia, tiração de onda etc? Quantos relatos não passaram o pano? Explicar o que não necessita explicação – o uso precário da linguagem, de declarações estapafúrdias, ações inconsequentes e julgamentos boçais – transformará o execrável em algo normal ou quase, algo com um propósito, aceitável, adequado à institucionalidade e ao jogo ao qual ele é inepto – o de dar e receber razões.

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