o erro é dos outros

é comum, em apresentações de edições acadêmicas, que o autor revele ter sido auxiliado por muitos e seus apontamentos valiosos. “as falhas, entretanto, são todas de minha responsabilidade”, dirá em seguida, eximindo seus interlocutores de qualquer imputação possível de má influência. “os erros são meus”, entretanto, pode significar que, se há algo de novo ali, é na parte nova autoral que se deve buscar o que não procede. contribuir de modo inovativo e certeiro aconteceria apenas no trabalho de outrém, quando na função de conselheiro.

de minha parte, quando estou fazendo colagens musicais, digo exatamente o contrário. ali, não basta garantir ter feito meu melhor, mas sim ter feito o melhor possível. assim, as eventuais falhas serão todas de responsabilidade dos artistas sampleados e falarão sobre eles e não sobre mim, ou sobre a colagem. afinal, não se trata de meta-colagem, mas de metalinguagem (ou seja, não se trata de meta-metalinguagem). os acertos são de minha responsabilidade, enquanto os erros são todos culpa dos outros.

(meu álbum palavra palavra deve sair em breve, pelo estranhas ocupações. subi minha versão de rosa, de pixinguinha, em meu bandcamp, como tira-gosto)


postado em 7 de setembro de 2022, categoria comentários, música : , , , ,

pipoca

quando deus estava a criar o melhor dos mundos, garantiu que neste existisse pipoca. das 13 possibilidades analisadas, entretanto, embora em todas menos uma ocorressem humanos, em nenhuma ocorriam humanos razoáveis. especula-se se entre os outros pequenos milagres que balizaram o trabalho do arquiteto do mundo estariam o pastel santa clara, a feijoada, o café expresso a arte da fuga (que, devido à conserva de nabo, teria de ser essa, sem o final mesmo). ou, ao menos, é o que eu posso pensar (dado que existem).


postado em 11 de agosto de 2022, categoria prosa / poesia : , ,

capivara de espinosa

uma das coisas que o corpo da capivara mais faz e portanto, uma das potências que ele mais ativa, é justamente a de mostrar-se como quadrúpede de pelos marrons, compacto, talvez até felpudo. essa ação, quase constante, elicitada pelo olhar de outros, mas não só, impõe severas restrições para aqueles que, em vias de tornar-se capivara por motivos alimentares, ou ainda outros, se vêm impotentes quanto à exibição de pelos.


postado em 13 de julho de 2022, categoria aforismos : , ,

segredo

após inúmeras aventuras nosso herói é capturado. ele guarda o segredo, o qual o conhecimento nosso vilão tanto almeja. ocorre que, ao ser oferecido duas opções – revelá-lo e evitar o pior ou não revelá-lo e ver o pior acontecer, nosso herói recusa a falsa escolha. diz:

“o segredo é meu para guardar. tenho duas opções, guardá-lo ou não. se o guardo, cumpro minha função. se não, falho em minha missão. o resto é por sua conta. pois se você, desprezível que é, ameaça minha família, essa ameaça é sua a realizar. veja, vilão, que só a você cabe cumpri-la ou não, assumindo uma covardia ou outra, fazendo-se verdadeiramente vil ou admitindo se tratar de bravataria. sua vileza, afinal, não é de minha conta. e por mais que eu vá julgá-lo por suas ações, ainda assim elas são inteiramente suas.”

o herói, que acreditava na liberdade, dessa opinião não fazia segredo – a chantagem era apenas uma tentativa de transferir a culpa aos outros, mias um recalque dos fracos de espírito. resoluto, ele acreditava que segredos deveriam ser, antes de mais nada, promessas não cumpridas de revelação.


postado em 23 de junho de 2022, categoria histórias : , , ,

o número era um cubo

no texto que é uma função, frege embarca em uma explicação digna de nota sobre a impossibilidade de um número variar (página 197 da trad. de paulo alcoforado).

Que é uma função? — Se dizermos “Há meia hora, o número que dava o comprimento desta barra em milímetros era um cubo; agora o número que dá o comprimento desta barra em milímetros não é um cubo”, não temos, em ambos os casos, o mesmo sujeito do enunciado. O número 1000 é o mesmo que o número 1001, apenas com outro aspecto? Se algo varia, temos sucessivamente diferentes propriedades e estados de um mesmo objeto. Se tal objeto não fosse o mesmo, não teríamos sujeito algum do qual pudéssemos predicar a variação. Uma barra se dilata quando aquecida. Enquanto isto se dá, ela permanece a mesma. Se, em vez disso, a barra fosse retirada e substituída por outra mais comprida, não poderíamos dizer que ela crescera. Um homem envelhece, mas se, no entanto, não pudéssemos reconhecê-lo como o mesmo, não teríamos nada de que pudéssemos predicar o envelhecer. Apliquemos isto ao número. Quando um número varia, o que permanece o mesmo? Nada.


postado em 20 de junho de 2022, categoria citações : , ,

saudosos quitutes

1. no começo da avenida brasil, em sua primeira esquina após a praça floriano peixoto, existe a gruta, lanchonete lendária por seus pastéis. entre as 7h e as 8h e entre as 9h e as 10h, aproximadamente, eram produzidos pastéis de queijo e de carne, de sabor e leveza ainda hoje não superados. como era o melhor pastel da cidade e a gruta nunca deixou de ser uma lanchonete muito modesta, o item barato e incrível acabava em minutos. de modo que já me vi, em ocasiões, sentado a ler, tomando café queimado, esperando pela próxima sessão. depois do fatídico anúncio do abandono da função de pasteleiro pelo encarregado, há quem tivesse tentado lançar #voltapastel como uma exigência necessária, mas eram poucos. o funcionário permaneceu impávido. não admitindo fazer menos que o perfeito, atribulado pelas exigências da excelência, optou pela aposentadoria contra continuar a angustiar-se com uma arte tão efêmera e ao mesmo tempo, que ele mesmo considerava simples demais, em sua excessiva humildade.

2. recentemente a padaria ping pão santa rosa anunciou que deixara de fabricar o biscoito de fécula de mandioca em formato de ferradura. fomos eu e carol bradar indignação, alternadamente, evitando sermos identificados como um casal, e comunicando a funcionários diferentes. o ferradura, melhor biscoito já produzido em toda a belo horizonte, combinação perfeita da força da textura com a sutileza na gustação, em uma forma robusta, até mesmo um pouco bruta na sua secura, mas que por isso mesmo era toda uma experiência. disseram, nas repetidas vezes, que ele não saia, ao contrário do palito. mas os pequenos palitos, por forma e tamanho, acabam se assemelhando demais a derivações do pão de queijo, além de promoverem a insaciabilidade do que pede sempre por mais um. seríamos os únicos a perceber isso? decadência do paladar mineiro, a recusar cada vez mais categoricamente tudo que não é de fácil mastigação?

3. existe algo muito peculiar em chegar no bar do nelson, no bairro santa inês e pedir o famoso torresmo, cortado em tiras retangulares precisas e finas, em um formato não apenas surpreendente mas impensável para quem nunca teve a oportunidade de pedi-los com sucesso. creio que ainda hoje se pode ir lá, mas como matthias, que morava perto, mudou-se para berlin, perdi o costume. a questão, entretanto, é que era preciso chegar cedo. muito cedo. pois quantas vezes pudemos ouvir, na voz caracteristicamente rouca, quase esofágica do garçom, que já tinha acabado? seria preciso agendar o torresmo? se já saia um, entoávamos, que venham logo três. e noite adentro, a corrida contra o tempo. acabado o torresmo (três porções era o deleite), outros itens, não tão impressionantes mas bastante apetitosos, iam, um por um, esgotando, até que na formulação afônica do simpático atendente nada restasse. não tem mais nada, dizia. nada, isto é, pra comer. continuávamos, ao estilo da marina, na cachaça.


postado em 16 de junho de 2022, categoria crônicas : , , , , , , ,

machado da restituição, harpa da perfeição

1. no poema medieval sir gawain e o cavaleiro verde, o cavaleiro verde é decapitado por sir gawain, com um golpe de machado. o machado, oferecido pelo próprio cavaleiro, estava afinal, imantado. ou é o que eu pensei – aparentemente era a cabeça que estava. de toda forma, melhor seria que o machado. machado da imolação desfeita.

2. o machado, com maior generalidade, poderia revocar os danos por ele causados. machado da restituição. e não que ele deixasse de os causar. mas garantiria uma recomposição imediata após avaria. em um mundo em que a necromancia estaria naturalmente interditada, ou em outro mais permissivo em que algum édito mágico é conjurado, poder-se-ia aproveitar da potestade do portentoso eixo de batalha para tentar infligir danos permanentemente mortais. nem sempre a restituição chega, afinal.

3. sir orfeo gostava de tocar sua harpa. pulemos sua história, a loucura e rapto da esposa, a abdicação do reino, a vida de ermitão, o feliz reencontro, a exibição dos dotes musicais ao vil monarca, a oportuna promessa, a reconquista da amada, a provação ao fiel servo, o desenlace afortunado. tudo isso nos parece formatado como tantas outras fábulas da antiguidade – justaposições de motivos, variações de combinações fortuitas.

4. acontece que, sua felicidade em jogo, apresentando-se sir orfeo ao soberano, talvez fosse melhor uma harpa enfeitiçada, a tocar a mais encantadora ode possível. mas como seria tal ode? aqui, se as palavras tecem louvores vagos e induzem apenas ao esfumaçado no imaginado, os sons teriam de ser, ainda assim, muito concretos, pois soando, seriam precisos e determinados. ou minto? pois no fundo o que soa pode ser o que é, mas o que se escuta não. aí, a imaginação voa e no mistério das avaliações, a música não é mais o percebido, mas que o percebido possa ser dito maravilhoso. a harpa da perfeição, entretanto, não tem cordas – sua música, inteira silêncio, faz-se dos sonhos de bem-aventurança daqueles que assim imaginam ouvi-los materializados. pois se a suprema glória é inaudível, ainda assim, o inaudível abre-nos ao experienciável.


postado em 10 de junho de 2022, categoria histórias : , , , ,

terceira dose

na segunda descubro que a vacinação avança em belo horizonte. 57, 58, 38, 27 e 28 anos podem ir se vacinar. três gerações quiçá? o que aconteceu com o 47, queria saber.

chego no posto são geraldo, vou a pé, na chuva. tudo é muito tranquilo e fácil. à noite entretanto, pouco antes do encontro virtual com paulo para jogar papo fora, 話をかける, a dor no braço faz-se nítida. logo intensifica e na hora de dormir está intensa a ponto de forçar insônia. a febre bate e dura um dia inteiro. a dor intensa no braço, três.

comento com paulo no segundo dia de pfizer e ele diz que há um lado bom: está funcionando. comento com carol e lembro que havia tirado onda das suas queixas quando da primeira dose. digo: talvez seja reflexão kármica, minhas primeiras doses foram coronavac.

vou à farmácia e o farmacêutico confirma: é isso mesmo, acontece. tenho dipirona vencida (jogo fora), pomada analgésica (passo duas vezes ao dia) e compro salompas (minhas costas sempre travam nessas situações). na hora de explicar, entretanto, solto um: tomei uma vacina da pfeifer.

agora, notem, pfeifer, referente à sílvia pfeifer, grafa-se assim mesmo. michelle pfeiffer, entretanto, tem na grafia um efe a mais. na praia de copacabana mítica cyberpunk de fawcett (de santa clara poltergeist) é a primeira que tem seu rosto projetado em telões de 300 metros, a fim de acalmar o populacho.


postado em 14 de janeiro de 2022, categoria crônicas : , ,

masque-z vous

na novela suprema da paranóia, os três estigmas de palmer eldritch, superando até mesmo o homem duplo, do mesmo philip k. dick, a droga chew-z alcança os pícaros da bad trip total ao lançar certos usuários em um espaço-tempo refeito e labiríntico cujas imagens retidas então populam a existência sóbria como efeitos colaterais, tornando igualmente labiríntica a determinação do que é real. afinal, estamos ou não ainda mergulhados no mundo alucinatório proporcionado pela mastigação da substância?

mas se palmer eldritch e sua aparência grotesca, mais os mostruosos glucks, não comparecessem. e se, ao invés de remeter a bifurcações de nossa vida, quando já tomamos uma decisão mas talvez tomássemos a outra, uma outra droga nos transportasse para uma realidade exatamente idêntica à nossa, mas ilusória? e fosse progressivamente difícil distinguir então se algo aconteceu aqui ou ali, da mesma forma que determinar qual das duas é de fato àquela em que há consequências materiais, se é que são apenas duas realidades e se é que existam consequências materiais, ou se essa materialidade não é ideal, efetiva nos n-mundos que são o labirinto do mesmo mundo vivido fenomenológico. fiquei imaginando que esse jogo de indiscerníveis e a confusão resultante nesse cubismo deveria ser contada em primeira pessoa, em um processo gradual de dissolução da confiança na consistência de um real que, entretanto, recusa a sair do banal.


postado em 10 de dezembro de 2021, categoria comentários : , , , ,

torrada

O quanto essa indagação [“seria possível algo ser tanto uma obra de arte quanto um objeto não-artístico?”] não se assemelha àquela em que é perguntado se possível ter e comer o bolo? Imaginemos que temos um bolo, uma fatia de bolo, para simplificar, ou melhor, uma torrada, que comeríamos junto ao café produzido tanto para que se tenha um bom café como para que seu filtro de papel, usado, seja apropriado e utilizado para a criação de uma obra de arte visual. Após você consumir a torrada, não haverá mais a torrada. Não havendo mais torrada, você não mais a possuirá. Assim, possuir (ter) e consumir (comer) são excludentes. Se a relação entre obra de arte e contraparte material for definida de modo similarmente excludente, então ser uma coisa implica não ser a outra. A ideia de objetos não-artísticos já indicava isso. Só que eu sou um sujeito um tanto insistente, com uma boa dose de teimosia, e quero explorar esses meandros até extrair daí pensamentos imprevistos. Lembro do clássico Alice Através do Espelho, em que a raínha branca declara que a regra para a geléia é que se tenha ontem e amanhã mas não hoje1. Assim como a geléia da raínha branca, a torrada pode ser retida. Reter a torrada é comê-la, mas apenas amanhã, nunca hoje. A comida mantém sua função, mas a ação que a consolida é postergada indefinidamente. A intenção prévia não se converte em intenção em ação.

Assim elaborado, esse caminho parece introduzir mais confusão do que direção. Reter um objeto como não-artístico seria tratá-lo sob a promessa do artístico mas não usá-lo como objeto cotidiano. Não apenas é estranha a diferenciação entre promessa e efetização quanto a tomar algo como artístico (o que seria isso?), como é estranho que um objeto cotidiano não seja usado quando poderia. Se alguém perguntar porque a torrada, já mofada, não foi jogada fora, seria um tanto estranho dizer “porque vou comê-la amanhã”2. Não faz muito sentido fazer e não comê-la. A não ser que a torrada seja guardada em condições muito específicas, em um ambiente controlado onde ela se mantenha constantemente comestível. Talvez o dono da torrada pense: “algum dia comerei a torrada”. Mas nesse caso a torrada é parte de uma situação inteira, sendo apenas um dos componentes de uma performance que não tem nada de habitual e cotidiana.

[1 “The rule is, jam to-morrow and jam yesterday – but never jam to-day.” (Carroll, 1994, p. 78). A frase responde a um trocadilho possível entre inglês e latim, o que não vem ao caso.]

[2 Exceto que Carolina Deptulski, quando criança, ao receber um conjunto de chocolates coloridos, resolveu guardá-los para os comer em uma ocasião especial. Como ela tinha os chocolates como muito especiais, a ocasião especial à altura acabou não chegando nunca. Quando desistiu de esperar os chocolates já estavam a muito mofados e curiosamente tinham perdido suas cores, todos aparentando um cinza nada convidativo.]


postado em 6 de dezembro de 2021, categoria aforismos : , , , , ,