machado da restituição, harpa da perfeição

1. no poema medieval sir gawain e o cavaleiro verde, o cavaleiro verde é decapitado por sir gawain, com um golpe de machado. o machado, oferecido pelo próprio cavaleiro, estava afinal, imantado. ou é o que eu pensei – aparentemente era a cabeça que estava. de toda forma, melhor seria que o machado. machado da imolação desfeita.

2. o machado, com maior generalidade, poderia revocar os danos por ele causados. machado da restituição. e não que ele deixasse de os causar. mas garantiria uma recomposição imediata após avaria. em um mundo em que a necromancia estaria naturalmente interditada, ou em outro mais permissivo em que algum édito mágico é conjurado, poder-se-ia aproveitar da potestade do portentoso eixo de batalha para tentar infligir danos permanentemente mortais. nem sempre a restituição chega, afinal.

3. sir orfeo gostava de tocar sua harpa. pulemos sua história, a loucura e rapto da esposa, a abdicação do reino, a vida de ermitão, o feliz reencontro, a exibição dos dotes musicais ao vil monarca, a oportuna promessa, a reconquista da amada, a provação ao fiel servo, o desenlace afortunado. tudo isso nos parece formatado como tantas outras fábulas da antiguidade – justaposições de motivos, variações de combinações fortuitas.

4. acontece que, sua felicidade em jogo, apresentando-se sir orfeo ao soberano, talvez fosse melhor uma harpa enfeitiçada, a tocar a mais encantadora ode possível. mas como seria tal ode? aqui, se as palavras tecem louvores vagos e induzem apenas ao esfumaçado no imaginado, os sons teriam de ser, ainda assim, muito concretos, pois soando, seriam precisos e determinados. ou minto? pois no fundo o que soa pode ser o que é, mas o que se escuta não. aí, a imaginação voa e no mistério das avaliações, a música não é mais o percebido, mas que o percebido possa ser dito maravilhoso. a harpa da perfeição, entretanto, não tem cordas – sua música, inteira silêncio, faz-se dos sonhos de bem-aventurança daqueles que assim imaginam ouvi-los materializados. pois se a suprema glória é inaudível, ainda assim, o inaudível abre-nos ao experienciável.


postado em 10 de junho de 2022, categoria histórias : , , , ,