o artista como acontecimento

há algo de profundamente romântico na visão de william gibson sobre uma certa categoria de personagens. o artista como acontecimento precisa estar tão imerso no fazer a ponto de não se importar com a obra, com as conexões, com a difusão. ele é um agente da vontade, uma força da natureza: um robô lixeiro, uma menina cataléptica. ali, há uma confluência entre imagens do inconsciente, outsider art e o capital. é como se nise da oliveira tivesse de operar clandestinamente; teríamos acesso apenas a raros quadros misteriosos, aqui e ali. mas não temos o ponto de vista do artista – apenas do capitalista que quer caçar esse tesouro vivo – a intencionalidade cujo elemento humano é sublime – ao mesmo tempo nosso e estranho. sedutoramente estranho. pois haverá muitos a sonhar com a esquizofrenia, o robô lixeiro, a catalepsia.

[dos rascunhos, janeiro de 2013]


postado em 13 de setembro de 2024, categoria comentários, livros : , ,

a nova babel virtual e o colapso da máquina

1. a cidade tornara-se um labirinto global em constante expansão, enquanto nós continuávamos recolhidos. na pós-pandemia, reclusos que somos, finalmente entendíamos o valor da permanência. o apocalipse havia chegado e aceitávamos tratar-se de fim de mundo. a revelação viera da separação entre os elementos do binômio economia e saúde. Sustentabilidade enfim: maximizadores autônomos de urbanismo bricoleur nos forneciam os materiais necessários para o condicionamento paulatino rumo a circuitos de digitalização em espiral. a natureza era refeita e não precisávamos mais de sol nem pele, positivamente hikikomoris, e olhávamos para dentro. restáva-nos a infinita tarefa da construção da nova babilônia, imenso playground virtual de perpétua mobilidade daqueles que redescobriam o nomadismo verdadeiro.

2. no seu incrível conto the machine Stops (a máquina para), de 1908, e. m. forster especula uma humanidade cujos indivíduos vivem isolados em abrigos subterrâneos auto-sustentáveis, geridos por um eficiente sistema – a máquina. desdenham tanto o corpo quanto o personalismo, e sua existência toma a forma de um formigueiro cibernético, de fluxos de imagens, pra usar a expressão do vilém flusser. o problema é que não há um completo abandono da prisão de carne para uma nova liberdade. os humanos evitam contato direto, tanto visual não mediado quanto tátil, mas o fazem em uma dependência excessiva dos equipamentos que os circundam, sem entretanto fundir-se a estes. o estado de coisas, depois de um ponto ótimo, reproduz uma mecânica que degenera em atavismo, e o ressurgimento do religioso, no mecanicismo não-denominacional, é um sinal que o colapso se aproxima. a cessação de atividade finalmente dá lugar ao terror inesperado do silêncio informacional. aprender de segunda mão, tomar tudo como mediado, acaba por mostrar que sair da caverna para encontrar o sol não é tanto encontrar as ideias, mas a incorporação das mesmas em coisas. penso que seja uma forma de vida e seus problemas o que torna as articulações valiosas e vivas, em mutação contra a estagnação do puro espiritual.


postado em 23 de dezembro de 2020, categoria comentários, livros, prosa / poesia : , , , , , ,

filosofia de sobrevôo #1

teeteto acaba por parir sócrates parindo a impossibilidade do empirismo na epistemologia. o velho aristóteles faz listas e, conselho do pai, procura considerar todos os casos pra achar a certa medida. nem sempre suas categorias são razoáveis, entretanto. o início escravocrata misógeno da política é uma espécie de filtro, mas por fim chegamos na democracia. e na amizade, virtuosa. mas na realidade, é por interesse. há perigo, pois é possível que alguma força faça a terra sair dos trilhos. há nos sonhos, reminiscências do dia. hobbes também o acha. é nominalista, tal como goodman. mas qual a ideia desse começo, todo “tratado do humano”, para pular abruptamente no “todos contra todos”? imaginem os escritos políticos de hobbes e rosseau como simulações, que a partir de condições iniciais chegam no que chegam. hobbes leviatã, monarquia, contrato, covenant (pacto). voltando na cronologia, temos os estóicos helenistas, sêneca o estóico hipócrita, conselheiro de todos nós: viver com virtude, aproveitar o dia produtivamente, acreditar no seu caminho, responsabilizar-se pelo que pode e aceitar o cosmos. marcus aurelius, stoic on steróids, o estóico machão, a morte, tudo morre, teu irmão, aquela moça, eu, você, o cachorro, a plantinha, o imperador, o escravo, seus amores. morte e morte. tá vendo aquela pessoa que tá lendo trocentos livros à toa? vai morrer. tá vendo aquele outro que corretamente é homem de ação, embrenhado na política, pela melhoria da sociedade? vai morrer também. [sêneca: julius canus, que extendeu seu aprendizado até a morte ela mesma, foi o que levou mais longe a busca filosófica…]. por fim, temos epictetus, estóico romano raiz, ex-escravo. mas que adianta? chatice. o que me lembra os analectos de confúcio, máximas e conversa fiada (ainda estou na seção de auto-ajuda. só mudei a pratileira de origem). família, temperança de novo, os antigos. essas coisas. vocês sabiam que maquiaveli escrevia contos? descontando, na medida do possível, o machismo de época, com o tema “esposas são piores que diabos”, há lá um sarcasmo, contra a hipocrisia da igreja, que não envelhece. e giordano bruno, ah bruno menino bruno, é só o amor… que nos une. mas é claro que há todo tipo de união, pois o desejo cria e indetermina. o universo só é o todo potência-ato no sentido atemporal. no tempo toda matéria é animada, vide os necromantes. mas não temam que, não obstante a magia, aristótolo dixit: ao observar quem dorme, saberemos se é feliz, e o mais feliz dos homems é o filósofo.


postado em 8 de agosto de 2020, categoria comentários, livros : ,

3 nietzsches

bataille quer delirar junto a nietzsche, rumo à morte e à dissolução do homem, seu ultrapassamento, e por isso escreve um diário confessional, em uma frança ocupada, agregando a ele um compilado inspirador e uma defesa. deleuze só tem olhos para a filosofia, então apara as pontas, seleciona e reorganiza normalizando, e de lá retira argumentos consistentes e um sistema defensável. klossowski está interessado na pessoa e na obra, detendo-se em pormenores, contradições, e vasculhando cartas, traçando os caminhos tortuosos do delírio à filosofia e de volta.

todos eles são fascinados pela última fase de nietzsche. mas nela, bataille pela loucura, deleuze pelas ideias, klossowski pelo humano. um se irmana e é imersivo, outro seleciona e é conjuntivo, o último acolhe e é disjuntivo.


postado em 28 de maio de 2020, categoria comentários, livros : , , , , ,

ao invés de adiar, viver o fim do mundo

“então, talvez o que a gente tenha de fazer é um paraquedas. não eliminar a queda, mas inventar e fabricar milhares de paraquedas coloridos, divertidos, inclusive prazerosos.” diz krenak num livrinho com 3 palestras curtas (ideias para adiar o fim do mundo). é uma mensagem de que é preciso viver bem o fim do mundo, passar por ele bem, ou melhor, perdurar e conviver com ele. porque um fim do mundo da civilização é necessário, mas há uma tragédia dentro dele que deve ser evitada, que é a tragédia da vida mal vivida, enquanto esse fim acontece.

apesar dos tons eminentemente cristãos, poderíamos dizer “apocalipse, não fim do mundo”. isto é, desvelamento, revelação. mas, como é viver dentro do desvelamento, da revelação? talvez seja como cair.


postado em 9 de maio de 2020, categoria comentários, livros : , ,

já houve n fins de mundo

nunca dei muita bola para os escritos do viveiros de castro. gostei de um ou outro artigo do inconstância, se é que os li direito, mas odiei o tom ácido e publicitário (“farei um livro, o anti-narciso”) do metafísicas. quando li o há mundo por vir?, junto de danowski, tive outra impressão. talvez primeiro porque a parceria tenha atenuado um pouco o tom blasfêmio, “anatemista”. se bem que espantalhos e aquele clima de “erro sobre porque desprezo meu inimigo” continuam. então poderia ser outra coisa. talvez porque há indicações interessantes – um livro do tarde, um filme do ferrara, e ainda a incitação à leitura do livrão do kopenawa. mas isso ainda seria pouco.

acho que a contraposição entre as concepções excepcionalistas do humano e o entendimento perspectivista / panpsiquista fizeram especial sentido aqui. porque se os perspectivistas têm o humano como um tipo de relação, móvel, dependente de perspectiva, com a predação como fator fundante, isso torna-se mais interessante quando lembramos da análise do anti-édipo de deleuze/guattari. pois existem técnicas que as tribos da floresta etc empregam para impedir que sua civilização mude de escala. e isso se contrapõe muito bem, como forma de pensar, a um pensamento ambíguo em relação à técnica, como o de heidegger, em que ou o humano quer manter-se longe das consequências da revolução industrial, mas não possui uma técnica social para tal (o resgate da poiesis sendo claramente insuficiente); ou milagrosamente o perigo abrirá uma outra via (mas começamos a ver que antes disso haverá o apocalipse antropocênico).

e sobre esse apocalipse, eles apresentam um dado que não deixa de ser reconfortante: já houveram inúmeros fins do mundo. este novo fim só o é em maior escala, ou ainda, na escala daqueles que se consideram vencedores, destruidores de todos os outros mundos. pois inúmeras sociedades já enfrentaram seus fins do mundo, ou ainda vivem num fim do mundo que se alastra. muitos humanos vivem jogados na precariedade existencial, arrastados pela decadência de uma terra e cosmologia arrasada.


postado em 9 de dezembro de 2019, categoria livros : , , , , ,

o pior final de livro de todos os tempos

acontece em a história do olho, de georges bataille, publicado sobre o pseudônimo “lord auch”, originalmente em 1928. trata-se do capítulo posfácio, uma tentativa de segredinho sujo, isto é, de falsamente estragar o próprio livro, como quem diz: “mas veja bem, a psicanálise explica (só que não né, caros amigos, eu estou dizendo isso mas ao mesmo tempo estou mentindo, esse segredinho psicanalítico, agora revelado, dá lugar a outro, cósmico e obtuso, que eu não vou contar, releiam lá…)”. isso efetivamente impede de que seja um dos meus livros prediletos.

os comentários ao final de cada capítulo de athrocity exhibition, de j. g. ballard, se eximem desse tipo de reclamação por alguns motivos: o livro é uma série de cenas curtas, que não se desenvolvem de uma maneira imersiva, na forma de um romance, no modo “entrar na história”. antes, é pela repetição de imagens, pela combinatória insistente mas apreendida em fragmentos, a qual denota obsessão, que desenvolvemos uma relação por contágio. as pausas explicativas certamente atrapalham a fluência da leitura e o acúmulo de tempo necessário para o delirar junto. mas ao menos não permitem delirar junto e depois dizem ser tudo aquilo fruto de uma bobeira. ademais, os textos explicativos são interessantes. ao invés de dizerem sobre uma vida impressionável e chata, como é o caso do texto de bataille, apontam como uma série de preocupações se manifestam diferentemente quando sob o modo da escrita literária ou do comentário espirituoso. as motivações ficam mais claras numa segunda leitura, mas elas não tentam reduzir o próprio texto, e tampouco ao mesmo tempo salvaguardar-se da redução.


postado em 12 de novembro de 2018, categoria livros : , , , , ,

a coleção particular

lendo o discurso preliminar sobre o acordo da fé com a razão de leibniz (em ensaios de teodiceia), ou então a origem do drama barroco alemão de walter benjamin, vemos desfilar diversas referências a autores e obras diversas, obscuras e datadas. de modo que muito dificilmente vamos consulta-las ou checar sua proveniência. no caso de benjamin, inclusive, o próprio autor alerta para essa peculiaridade: afora calderón, que está lá como contraponto (e é espanhol), quem conhecerá os objetos da pesquisa, aqui transformada em texto?

parece que, acertadamente, georges perec viu nisso uma grande potência. essa existência lateral, imaginada, a todo momento deslizando para a ficção, construindo a prática de ler sem conhecer efetivamente (porque apreendemos as posições, conceitos e conclusões, mas de onde partem é nebuloso). e nisso teve a astúcia de deslocar o tema para a área na qual a questão da autenticidade era dado maior valor: a pintura. (e é interessante imaginar como às vezes parece haver mais preocupação com a pintura do que com a pesquisa social, nesse sentido – penso nos inúmeros estudos forjados contra a renda básica universal, por exemplo, como os que aparecem no livrinho divertido de rutger breger, uma utopia para realistas).

autores como simon reynolds e david toop causam por vezes grande angústia na leitura porque, referenciando uma quantidade enorme de canções e acontecimentos musicais, evocam a necessidade de conhecer os objetos abordados. ao invés de borrões e passagens, obstáculos e opacidade. um outro exemplo desse tipo de escrita que bombardeia referências, em música, é dado por glenn watkins no seu pirâmides no louvre – um livro sobre o pós-modernismo na música, que de tão desconhecido entre as pessoas da minha área, me parecia apócrifo. até hoje me pergunto se a citação de stravisnky na minha dissertação, isto é “tudo o que me interessa, tudo o que eu amo, eu desejo fazê-lo meu”, que de lá veio, não é pura ficção. de todo modo, seria interessante verificar quais os modelos existentes que perec usou para ativar sua imaginação, como stravinsky, que como finnissy e peter wustmann, para elaborar seus corais, inspirou-se em gesualdo, compositor do qual watkins é de fato especialista.


postado em 22 de setembro de 2017, categoria livros : , , , , , , , , , , , , , , , ,

3 considerações sobre a escrita chinesa

a partir de escrita chinesa, de viviane alleton (lpm pocket, 2012). seleções do livro podem ser vistas aqui.

§1 o caractere chinês não é propriamente um ideograma – nem todos os desenhos ou combinações de desenhos correspondem a ideias e existe uma ligação entre caracter e som, mais complexa, mas fixa. o caracter é uma espécie de sílaba mas mais que isso – um signo mínimo, porque uma unidade semântica mínima (no estilo wenyan se usam apenas “palavras” monofônicas). ele pode ser composto de elementos diversos, mas forma uma unidade dentro do espaço do caractere – a língua é morfosilábica.

a arbitrariedade dos signos é aparente no fato de que é preciso primeiro saber o significado para depois relacionar este com o desenho e com considerações etimológicas; não existe uma lógica que permitiria deduzir essas etapas.

§2 o chinês não é universal – há combinações lógicas, porém outras que são convenções arbitrárias, e utilizações de caracteres focadas em características fonéticas com avaliação parcial ou ausente dos significados ideogramáticos destes (quando existem). por outro lado o chinês é uma escrita – existe, para uma pronúncia e significado, uma maneira única de escrever (“uma relação termo a termo com a expressão oral” p.18). essa maneira pode variar, mas a língua depende de um aprendizado de vocabulário junto ào sinograma. há a conexão combinatória e de montagem entre som e imagem, que é complexa, mas existe. não se trata de uma língua em que há um paralelismo som/imagem (como há no japonês, quando se usam kanjis escritas fora dos contextos de pronúncia sino-japonesa).

§3 existem sempre muitas formas de escrever um som. mas é porque a escrita é a escrita de um som mais um significado, que é inferido pelo sentido do que é dito (a frase). assim, numa frase, sabemos os significados e ouvimos o som. daí pode-se escrever, isto é, traçar a ligação entre som, significado e imagem.


postado em 3 de agosto de 2017, categoria comentários, livros : , , , , , , ,

cem anos de música no brasil

no livro cem anos de música no brasil 1912-2012, organizado por joão marcos coelho, há um capítulo escrito por marco scarassatti denominado instrumentarium: dispositivos e contradispositivos no instrumentário brasileiro dos últimos 100 anos. nesse décimo capítulo, marco inclui pequenos textos de diversos músicos da cena brasileira, realizados a partir da pergunta “o que é um instrumento?”.  nas páginas 186 a 189 há minha contribuição, disponível nessa página. disponibilizei também as respostas às 5 perguntas de marco sobre o tema; escrevi-as em 18 de março de 2013 – soam como se eu tivesse acabado de ler os livros “ciência em ação” e “a esperança de pandora”, do bruno latour.

quanto ao livro, um aviso: folheando rapidamente, já noto diversos pequenos erros – nome de autor (na capa, marco scarassatti aparece como “marcos scarassati”), ano de publicação duplo (2014 ou 2015?), número de página referente ao capítulo que eu participo incorreta (p. 128), informações biográficas fictícias ao final (de novo, o marco aparece como professor de composição, e o conheço bem o suficiente pra saber que não), além de nos anexos de um texto – descrições da atuação de grupos musicais – haver pequenas inconsistências aqui e acolá.

não deixa de ser um livro que promete interesse, mas já na primeira passada esses descuidos aparecem como falta de cuidado e pouca preocupação com a boa qualidade do texto (e visualmente, o livro é bonito). meu próprio excerto contém um parágrafo em que falta um pedaço de uma frase… (mas, obviamente, revisei ambos na versão que disponibilizei).


postado em 21 de abril de 2016, categoria livros, textos : , , , , ,