deus e as paredes

De modo a podermos corrigir tão falsa opinião observaremos que não há nenhuma relação necessária entre o recipiente e o corpo nele contido, mas que essa relação é absolutamente necessária entre a figura côncava do recipiente e a extensão compreendida nesta concavidade, e assim tanto poderemos conceber uma montanha sem vale do que semelhante concavidade sem a extensão contida nela, ou esta extensão sem qualquer coisa extensa, uma vez que o nada – como já observamos várias vezes – não pode ter extensão. É por isso que se nos perguntassem o que aconteceria se Deus retirasse qualquer corpo que está num recipiente sem permitir que outro aí entrasse, responderíamos que as suas paredes [se aproximariam tanto que] imediatamente se tocariam.

[Descartes, princípios de filosofia, II. §18]

descartes fala do caso do copo, mas permitamo-nos reter agora apenas a sua sugestão quanto a paredes e observemos as paredes de uma sala. é certo que não há um nada a preencher o espaço interior, mas sim um algo, o ar, matéria rarefeita mas perfeitamente volumétrica. mas então eis que surge a misteriosa atração e sensualidade do ângulo entre duas paredes.* como o vácuo é logicamente impossível, elaboramos uma hipótese para explicá-la. talvez as imperfeições nos deslocamentos de ar no recinto constranjam deus a aqui e ali, levemente e no entanto, firmemente, em sutileza geométrica, a aproximar as paredes e então separá-las. pois como explicar esses devaneios que temos, ao fixar o olhar nestas arestas? certamente quanto ao copo, por seu pequeno tamanho e circularidade, o manipulamos, insuspeitos. mas uma sala é grande o suficiente, e seus lados costumam organizar-se em ângulos pronunciados, quando não simplesmente retos. aproximamos os ouvidos. com um pouco de imaginação:

Acima e abaixo. Clici-clic. Clici-clic. Abaixo e acima clici-clic. Clici-clic. Cliciclic abaixo e abaixo. Clici-clic. Clici-clic. Clici-clic acima e acima. (…) Quando suas paredes ascendiam e separavam-se desta forma, elas faziam uma espécie de som de mola sinuoso clici-clic. (…) De vez em quando as quatro paredes ascenderiam. De vez em quando as quatro paredes se ergueriam um pouco e separariam. De vez em quando as paredes se levantariam um pouco e separar-se-iam do chão. De vez em quando as quatro paredes dessa sala erguer-se-iam lentamente e separar-se-iam do chão. E depois de alguns segundos, lentamente abaixar-se-iam de volta ao chão de novo. (…) As paredes estariam clici-clicando acima e abaixo, enquanto ele contava todas as suas implicações novamente e de novo. Acima e abaixo. Clici-clic.Clici-clic. Abaixo e acima clici-clic.

[GX Jupitter-Larsen, Adventure on the High Seas, p. 120, 127, 131]

(*) vide ballard, athrocity exhibition.


postado em 14 de dezembro de 2019, categoria comentários : , , , ,

o pior final de livro de todos os tempos

acontece em a história do olho, de georges bataille, publicado sobre o pseudônimo “lord auch”, originalmente em 1928. trata-se do capítulo posfácio, uma tentativa de segredinho sujo, isto é, de falsamente estragar o próprio livro, como quem diz: “mas veja bem, a psicanálise explica (só que não né, caros amigos, eu estou dizendo isso mas ao mesmo tempo estou mentindo, esse segredinho psicanalítico, agora revelado, dá lugar a outro, cósmico e obtuso, que eu não vou contar, releiam lá…)”. isso efetivamente impede de que seja um dos meus livros prediletos.

os comentários ao final de cada capítulo de athrocity exhibition, de j. g. ballard, se eximem desse tipo de reclamação por alguns motivos: o livro é uma série de cenas curtas, que não se desenvolvem de uma maneira imersiva, na forma de um romance, no modo “entrar na história”. antes, é pela repetição de imagens, pela combinatória insistente mas apreendida em fragmentos, a qual denota obsessão, que desenvolvemos uma relação por contágio. as pausas explicativas certamente atrapalham a fluência da leitura e o acúmulo de tempo necessário para o delirar junto. mas ao menos não permitem delirar junto e depois dizem ser tudo aquilo fruto de uma bobeira. ademais, os textos explicativos são interessantes. ao invés de dizerem sobre uma vida impressionável e chata, como é o caso do texto de bataille, apontam como uma série de preocupações se manifestam diferentemente quando sob o modo da escrita literária ou do comentário espirituoso. as motivações ficam mais claras numa segunda leitura, mas elas não tentam reduzir o próprio texto, e tampouco ao mesmo tempo salvaguardar-se da redução.


postado em 12 de novembro de 2018, categoria livros : , , , , ,