Re-explicando os Assassinatos em Oxford

O começo de Oxford Murders é mais significativo do que a princípio pareceria: a figura do jovem Wittgenstein escrevendo no seu caderninho em meio a saraivadas de tiros é a do gênio, afirmado do ponto de vista do catedrático – a autoridade enuncia um fato: em meio à guerra, a natureza impele o combatente a parar tudo para registrar a verdade, a resposta necessária e correta.

Assim, a figura do grande filósofo é apresentada já enviesada, na forma de uma armadilha: é deixando-se levar pelo heroísmo do Tractatus que o protagonista deixará de ver como a questão mais importante é justamente aquela depreendida da apresentação, pelo segundo Wittgenstein, de sua crítica ao regularismo. De modo que as aparências enganam, mas especialmente porque se está a confiar que é possível desvendá-las de uma determinada maneira.

Em 1812 o governador do Massachusetts e vice-presidente dos EUA, Elbridge Gerry redesenhou o perímetro das zonas eleitorais de modo a favorecer candidatos do partido republicano. Alguns jornalistas observaram o novo mapa e notaram que uma das zonas tinha a forma de uma salamander (salamandra), e de lá compuseram o potmanteau: gerry-mander. Surgia assim um termo que denotaria a arbitragem tendenciosa de fronteiras, a arbitrariedade na delimitação de um perímetro.

No filme, há um momento em que o problema das séries de números, às quais é pedido que se diga qual é o próximo, é introduzido. A questão ali é que, dada uma série e um próximo número, é possível criar regras que contemplem todas as soluções, mesmo as que parecem inteiramente erradas segundo nossa intuição. Talvez essas soluções não sejam elegantes, é verdade, mas serão válidas. Saul Kripke no livro Wittgenstein on Rules and Private Language, dá o exemplo da quadição, uma regra que estipularia uma operação de adição de dois números em que, se qualquer um deles for maior que 57, o resultado será sempre 5. “Nosso paradoxo era o seguinte: Uma regra não poderia determinar um modo de agir, dado que todo modo de agir deve poder concordar com a regra. A resposta: se todo modo de agir deve poder concordar com a regra, então deve poder contradizê-la também. Por conseguinte, não haveria aqui nem concordância nem contradição” (Wittgenstein, Investigações Filosóficas §201).

Martin, portanto, crê poder lidar com a situação envolvendo Seldom (“raramente”, nome já bastante suspeito), ao adicionar premissas e tirar conclusões, sem saber que este arquitetara em sua própria quadição a ilusão de uma silogística complexa, porém direcionada. Para uma dada regularidade não é apenas possível construir sua regra, mas também construir regras diferentes que forneçam previsões divergentes. Ao olhar para o passado, a empresa de sucesso encontra sua fórmula vencedora; ao parar para a auto-crítica, os militantes explicam o fracasso da revolução etc.

É difícil, para nós, que nosso comportamento, emaranhado em regras cumpridas ou não, envolvidos em acordos e em motivos diversos, seja explicado como mero resultado de regularidades de conduta – nós que podemos também simular, dissimular, confabular… No fim, a arbitrariedade na delimitação do válido, o gerrymandering mais tendencioso, é aquele que nos convida a desvendar um mistério cuja solução foi ajustada de antemão segundo nossas disposições mais prováveis.

{Oxford Murders, filme de suspense de 1h44, dir. Álex de la Iglesia, com Elijah Wood, John Hurt, Leonor Watling, 2008}

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