He thrusts his fists against the posts and still insists he sees the ghosts

É possível que repetir uma rima impeça alguém de acessar sua mente? Uma ladainha que ocupe os processos cognitivos com uma frase cuja inanidade seja o antídoto contra qualquer abertura à invasão? Como uma música que gruda, sendo auditada repetidamente, inevitavelmente, e impeça alguém de escutar outras ou lembrar de certa palavra? Ou ainda um anti-malware que funcione ocupando toda uma parte do poder computacional, não existindo processo disponível a ser hackeado?

Esses dias, com a coletiva do episódio Bolsonaro-Moro, no gênero inaugurado por Temer, da lavação de roupa presidencial pública, junto à visão do que considerei ser um clima muito “fiquem em casa” na roupa do ministro da economia, fui acometido de um episódio mais extrado de dissonância cognitiva. As declarações ainda não tinham sido neutralizadas pelo expediente cartinha do Marcelinho. Assim, como o governo federal atual é desastroso e fascínora, e eu estava a terminar o livro It, do Stephen King, vi-me a repetir algumas vezes o mantra do protagonista Big Bill, suposto destrava-língua: he thrusts his fists against the posts and still insists he sees the ghosts.

Acontece que essa frase, para além de ser parte de um trava-língua, advém de outro livro – trata-se de uma citação de Donovan’s Brain, de Curt Siodmak, de 1942. Neste, há um cérebro no aquário, cultivado por um médico obcecado pelos possíveis avanços na sua profissão. Depois de alguns dias, ao acordar, Patrick Cory descobre que o cérebro de Donovan o fizera escrever o nome dele durante o sono. Logo estarão a comunicar-se telepaticamente. Mas com a ampliação das forças mentais do cérebro, Cory começará a agir de modo estranho e suspeito.

Amidst the mists and coldest frosts,
With stoutest wrists and loudest boasts,
He thrusts his fists against the posts,
And still insists he sees the ghosts.

Um outro livro que também evoca o mesmo procedimento, alguns anos depois (1952-3), é The Demolished Man, do Alfred Bester. Nele, para evitar que paranormais leiam em sua mente a intenção assassina que possui, Ben Reich, o complexado milionário, repete uma musiquinha pegajosa (um jingle que é um earmworm – “verme de orelha”). O problema desta é que, conforme o livro, que admitidamente não gostei, prossegue, é capaz que o pobre leitor, no caso: eu, também comece a ficar preso naquela estrofezinha irritante. Conforme insiste, a ladainha se desprende do livro e passa a agir contra o próprio, bloqueando na sua auditação, a leitura. O som interno que sinto formar quando de uma leitura literária, tem seu ritmo e forma mascarado pela ladainha.

Penso que isso seja um problema quanto ao caráter monofônico da linguagem falada. Falamos uma coisa só. Internalizamos essa fala de modo que nossa fala interna, como palavras faladas silenciosamente para si mesmo (“auditadas”), também seja monofônica. Daí segue que, algo que fique rodando em loop de fato tenda a ocupar todo o espaço linguístico disponível de imaginação linguística mental. E está aí um papel do mantra que é repetido numa meditação – dificulta a formulação de proposições. Pois grande parte do que entendemos como o mental (e para alguns, tudo) é modelada como a linguagem pública falada, só que internalizada, ou então derivada a partir desse modelo proposicional.

Há nesses exemplos o seguinte uso da ladainha. Em ambos o espaço proposicional, desse mental que é compreensível para nós mesmos, que pode ser formulado, racionalizado, traz o mental para o lado da linguagem. E preenche esse lado com palavras vazias, cuja frase não possui um significado relevante. No caso do Homem Demolido, Ben Reich a utiliza com a função de um mantra, bloqueando outros pensamentos que possam ser formulados em termos de proposições, como todos aqueles cuja decodificação forme frases que indiquem sua intenção homicida. Similarmente, no Cérebro de Donovan, Frank Schratt a utiliza para que o cérebro psicótico não consiga penetrar em suas intenções. Seria interessante, entretanto, estipular um segundo caso, no qual esse preenchimento do mental linguístico neutralizado de significado serviria para a monopolização do mental. No início de seu processo assimilatório, ainda possuindo poderes restritos, o cérebro de Donovan queira comunicar palavras. Adquirindo maior potência, o cérebro partira para a transmissão de processos sub-simbólicos, não-linguísticos, que o fizessem tomar conta da mente de Cory, de baixo pra cima. De máquina para máquina (de modo a corroborar as frequentes injunções do Dr. Schratt sobre a inumanidade de tais pesquisas). Se a Cory fosse possível um segundo mantra, mais podroso, este ocuparia processos mentais subjacentes de modo que toda a esfera do mental fosse transportada para aquela da linguagem. E isso seria aparentemente possibilitado pelo ciclo-fechado – o loop, que retirando o significado da frase-mantra, o tornaria “comunicante” com a esfera não linguística.

Mas e o uso da frase de Siodmak no It, de King? (eu não li Dança Macabra, em que o autor teria algo a dizer sobre isso). Ela funciona como um talismã. O horror impossível mas real é trazido para sua impossibilidade factual, porque descolado um pouco da sensação/impressão mental obnubilada de medo traumático que o monstro provoca. Ele se torna assim, efetivamente, uma ameaça menor. A frase, pela dificuldade com que Bill a pronuncia, por sua gagueira, e por ser um trava-língua, acaba por ganhar poderes mágicos. Afinal, sua mãe dizia que quando pronunciasse esse trava língua perfeitamente, ele destravaria seu gaguejar. Mas daí, extraio dois fatores: o poder mágico se dá numa reorganização da mente de Bill, ao bloquear a intrusão mental do monstro. E, ponderando agora, há fator adicional na escolha de Siodmak: a quantidade de sibilantes do poeminha, que o torna especialmente ruidoso, em termos sonoros, como que a evocar padrões informacionais pouco compressíveis, típicos de sonoridades mascarantes, que apagam, afogam todas as outras.

***

Chegando ao final de It, não pude deixar de pensar se o Brasil atual não seria uma grande Derry, a cidade fictícia onde habita o monstro da narrativa. Mas se o Brasil fosse uma Derry, sua essência seria de alguma forma esse mal traumático que se confunde com o território, e que, uma vez extirpado, arrasta consigo a região, provocando sua derrocada. Um mal que tem de ser tratado pelos brasileiros com relutância, omissão, marasmo, com o risco de, ao dissolver, levar o país junto. Mas, ao mesmo tempo, um lugar prenhe: o ciclo de terror estaria pronto pra se multiplicar em células que se espalhariam, diminuindo os entre-tempos, e ocupando o território mais uniformemente. Algo mergulhado em uma alternativa infernal. Vou tentar escolher livros mais leves, nos próximos meses.

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Um comentário sobre “He thrusts his fists against the posts and still insists he sees the ghosts

  1. Uma ideia me ocorreu lendo seu texto: o trava-língua destrava a língua do personagem gago que combate o monstro com as palavras. As palavras que travam a língua dos não gagos. Outra ideia: a de transe. No transe coletivo das crianças há uma visão da origem das coisas. Ao repetir uma fórmula para travar a língua, se produz um transe que solta a palavra, devolve-a ao seu contato original com a coisa; como ocorre na magia e no mito.
    Mas as crianças vivem, ou viviam em uma espécie de transe, isso era a infância, uma invenção até recente na história da cultura ocidental, já há muito devidamente colonizada por celulares. Ontem a noite, depois de um dia triste pelo suicídio de um velho artista e pela indignação de um outro crepuscular e desesperada de outro, sonhei que estava apanhando do Chuck Norris com aquelas calças boca de sino, botas de caubói e até a coreografia ridícula. De onde saiu esse pesadelo vintage? Claro, da minha infância, mas também do sonho coletivo de uma parte importante do Brasil, um sonho de ser um caubói karateca loiro dos anos 70 fazendo a lei com as patas em uma cidadezinha dos EUA. Acho que o Brasil não é Derry, mas tornar-se Derry é uma aspiração nacional, um grande projeto civilizatório.

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