A dança unifica: Love Live! School Idol Project

Existe todo um esforço de tipificação de personagens em “projeto de ídolas escolares: amor ao vivo” (ラブライブ! School idol project). De modo que as integrantes do grupo de idols tenham, cada uma, sua série própria de características fofas únicas, correspondendo largamente a uma combinação e articulação estereotípica de elementos moe. Cada uma delas seria ajustada a provocar, para um segmento do público adequado, sentimentos calorosos de estima. E o publico alvo do anime seria particionado nessas possíveis áreas de captura de afeto. Assim, a personagem principal é entusiasmada e carismática, mas atrapalhada e avoada; suas duas companheiras devem ser responsáveis, uma equilibrada e suave, a outra formal, mas tímida; das companheiras que vão chegando há também uma nerd nervosa, com traços mais redondos, uma garota esportiva esguia redescobrindo a feminilidade, a compositora rica e fechada, a russa austera que recalca seus desejos e esconde suas fraquezas, a garota conciliadora misteriosa com seios fartos, a garota vergonha alheia mas no fundo bom coração. Daí há personagens que proporcionam situações específicas, como o alívio cômico estilo bobo da corte da Nico, ou a exaltação otaku de Hanayo, as atrapalhadas de Honoka, o lado amedrontado de Eri, o constrangimento de Umi etc.

Entretanto, as 9 integrantes do Muse têm também algo que as unifica: são uma conjunção única de 9 garotas diferentes com o objetivo comum de montar um grupo de idols em sua escola e salvá-la, ao atrair mais alunas para o ano letivo seguinte, de modo que a instituição não feche as portas. E o pertencimento a esse grupo é constituído através de suas apresentações, em que cantam e dançam. Essa unidade, entretanto, vai além da música e coreografia em comum. Porque, é claro, as canções, coreografias e vestimentas não dão tanta liberdade individual a cada uma delas – são apenas adereços, o timbre da voz, num registro feminino idêntico juvenil, detalhes no modo de cantar, e alguns passos e poses personalizados que mudam de uma a outra. Porém, na verdade, e aqui chegamos no nosso ponto: elas não apenas dançam igual, mas tornam-se corpos idênticos, durantes as danças.

O culpado, é claro, é o infâme CGI, o fato de que as cenas de danças serem feitas usando técnicas 3D. Através dela é possível preparar um único corpo genérico, instruindo esse conjunto de polígonos já articulado a realizar os variados movimentos coreográficos, e depois vesti-lo com a aparência da personagem requerida, multiplica-lo e vesti-lo de outra. A vantagem de tal é que, além da economia de trabalho, será possível realizar movimentos de câmera cinematográficos ousados, similares aos de transmissões de shows da vida real. Pode-se ler isso negativamente, como se a produção não disposse de uma equipe capaz de realizar tais cenas usando as técnicas apropriadas que garantissem a diferenciação dos corpos das personagens. Pode ser positivamente, dizendo que o importante ali é o senso de conjunto de um grupo que é um corpo só, e um realismo quanto à cinematografia das apresentações. No primeiro caso, eu aconselharia o público incomodado assistir Idolmaster, obra prima da arte do empilhamento de personagens com muitos pontos moe. Quanto ao segundo, é mais complicado. No filme que faz sequência à segunda temporada, há na cena final uma aglomeração enorme de estudantes, para dançar uma música, apoteose das idols escolares. Comparem a foto de capa da publicação, 3D, com a abaixo, 2D, como a de baixo é mais graciosa. Claro, a primeira é parte da cena de dança, a segunda é uma pose, com apenas o trio do grupo A-Rise se movimentando.

O filósofo Nelson Goodman desenvolveu toda uma teoria dos símbolos e da notação, afim de redesenhar como devem se conceber os problemas da arte. Em Linguagens da Arte, dentre outras coisas, ele discute o caso da partitura de música e depois da possibilidade do estabelecimento de uma linguagem notacional para a dança. Goodman diz que uma partitura musical não é apenas algo prescritivo e prático – que permite alguém saber como tocar uma música, mas tem um papel teórico: ela permite que uma obra musical tenha uma identidade bem definida. Porque se soubermos operar bem com aquele tipo de notação apropriado para aquele tipo de música, e formos muito hábeis nele, poderemos extrair da escuta de uma música sua partitura. Podemos transcrever aquela música, tirar ela numa partitura. Pois um sistema de notação musical notaria o que é essencial e primário daquela música; a própria notação já filtraria de antemão o que deve ser notado: deve ser notado aquilo que o sistema de notação está preparado para registrar. Por exemplo, as notas musicais. Mas se as pequenas desafinações ou timbres e ênfases específicas são acidentais, isso é, do domínio de uma interpretação específica que um intérprete imprime na sua performance, então essas coisas não são notadas na partitura, e o sistema de notação não abre espaço para notá-las, mas permite que essas variações ocorram livremente nas performances.

Mas e no caso da dança?  Para termos uma partitura para dança é preciso que os elementos daquela dança possam ser simbolizados; representados por sinais. E isso envolve principalmente definir o que é essencial para a identidade daquela dança e o que não é. No caso do grupo Muse no anime, não é difícil de pensar que os passos da coreografia e as diferentes posições no espaço, combinados com uma maneira de registrar os tempos de início, a duração, e talvez a amplitude dos gestos, são elementos que devem ser anotados. E de fato, eles são anotados. Porque para criar a movimentação do boneco 3D é preciso fornecer todas essas coordenadas, e essa programação nada mais é que uma partitura. Agora, certamente a maior perfeição, o tônus mais firme e postura mais altiva de Eri, que foi bailarina, não são essenciais – são elementos acidentais à identidade da dança; são elementos que só a Eri poderia trazer à dança. Seriam os elementos do seu jeito de dançar. Poderiamos também imaginar como cada personagem dançaria – Nico de modo mais artificial, Rin com os acentos mais explosivos, talvez Honoka espontânea demais, Maki precisa e comedida, Nozomi mais contínua e calorosa.

O argumento que não se pode capturar sutileza e complexidade de uma dança numa notação é falacioso. Porque a partitura não precisa captar isso, mas apenas os elementos que permitem a dança, como uma obra coreográfica, ser identificada e replicada em novas performances. O problema de Love Live é que, nas cenas de dança, o que vemos é apenas o essencial. E ver uma dança não é apenas identificar o essencial, a coreografia, mas ver personagens dançando e sentir seu calor que, se não é propriamente humano, vem do humano, ou ao menos, do seu moe.

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