Há uma célebre passagem no clássico da literatura de ficção científica The Female Man, de Joanna Russ, em que ela descreve o sistema de regulação dos gêneros sexuais desenvolvidos pelos homens, após a culminação da guerra entre sexos na total separação entre os gêneros biológicos.
Diferentemente das mulheres, que desenvolvem um sistema comunitário igualitário, mas com ampla valorização do desenvolvimento de aspirações individuais (um comunismo liberal), os homens resolvem manter, tanto quanto podem, uma sociedade hierarquizada, que consideram viril. Como parte desta, estabelecem uma divisão rígida entre gêneros, que mistura sexualidade, normas comportamentais e posições de subordinação. Há então, no mundo masculino, os homens verdadeiros, os artistas, espécie de meio-termo, e os homens-mulheres. Estes últimos devem ser subalternos e sexualmente submissos aos homens verdadeiros. Passam por uma série de operações cirúrgicas e adaptações. Mas dado a perda de contato com o mundo das mulheres, passam a espelhar seu papel de gênero em uma visão cada vez mais deturpada e distante do que é uma mulher. De fato, recebem das próprias mulheres informações cada vez mais exageradas e ridículas sobre o que seria o corpo feminino, orientando de modo bizarro ao pornográfico.
Garotas da Rua de Trás – Gokudolls (Back Street Girls -ゴクドルズ), série animada de quadros de humor negro japonês, possui um esquema com certas similaridades ao episódio de Russ. Três jovens integrantes da máfia japonesa cometem um grave erro e tem de se retratar implorando pela vida. Seu chefe os manda para a Tailândia, onde são remodelados fisicamente em três mulheres aptas a carreira de ídolas (idolls). Também são remodeladas mentalmente, para adquirir, pelo menos na quantidade necessária ao trabalho, a feminilidade comportamental que garantirá um charme feminino, muito ligado a adjetivos como fofura, graça, encanto, espirituosidade, alegria, positividade e erotismo comportado. Dentro do ramo do entretenimento que foram colocadas, devem cantar e dançar, participar de entrevistas e programas de variedades, noites de autógrafos e encontros com fãs.
Se listarmos os elementos que tornam a construção do homem como mulher grotesca no livro de Russ, chegamos a algo como: (i) há uma sociedade em que os papéis relacionados a gênero sexual estão divididos em dois – homens e mulheres. (ii) Essa divisão se acentua e torna-se extrema; torna-se cisão radical. (iii) Os homens querem manter a dualidade de gênero, e garanti-la como uma dualidade hierárquica. (iv) Para isso transformam parte dos seus em mulheres, tanto do ponto de vista físico como comportamental; priorizam o estabelecimento de uma posição subalterna e a prostituição como função. (v) Como vêm-se distante de mulheres de carne e osso, são levados a agir e modelar baseando-se em concepções fantasiosas das mesmas.
Em Gokudolls há de cara a colocação da máfia como uma irmandade masculina. Essa separação do lugar do masculino é como uma versão exagerada da própria sociedade japonesa. Assim, se no Japão existe já a construção de idolls como mulheres ideais, a partir de dados abstratos, as idolls de Gokudolls poderão ser construídas ainda mais… e então, a partir de homens. Afinal, já não seria esse papel da mulher como garota encantadora do entretenimento abstrato o suficiente? Distante de uma pessoa concreta, complexa e aberta ao mundo, as idolls teriam corpos jovens adoráveis e uma mentalidade voltada a ideia de público alvo, o homem solitário, ou a solidão do homem que não conecta ao feminino concreto mas apenas às “deusas da distância”, aos quais se idolatra. Isso permite a abstração dos atributos de personalidade em prol daqueles que promovem o encanto, em prol apenas daqueles que são mostrados, como que por encomenda. Trata-se do domínio do 可愛い, do fofo, que diferentemente da ficção The Female Man, não tem tons pornográficos e de subordinação crua, mas responde a outros fantasmas. E porque uma mulher necessariamente teria de ser o alvo desse treinamento e adotar esse papel como profissão?
De fato, uma mulher fisicamente atraente e jovem dispensa as operações plásticas escusas, e só precisaria moldar com exercícios e treinamentos o corpo. Ademais, a cultura japonesa acabaria tendencialmente direcionando as mulheres para comportamentos próximos ao do papel. De modo que seria apenas necessário, nos casos fortuitos, de acentuá-lo, trazê-lo à tona e torna-lo aritificioso. Entretanto, ainda assim: como papel, é uma construção e como tal, de modo absurdo, pode ser moldada a partir dos jovens yakusas. A imagem da mulher-para-o-homem se descola. Não necessita mais do lastro, da mulher, para se realizar. Mulher fantasia, abstração selecionada, voltada ao fetiche do encanto inalcançável, de perfeição mundana.
Entretanto erra quem acha que se trata apenas de um papel, como se fosse um simples atuar, teatral. Porque como papel construído de uma feminilidade ideal (fantasiada, abstrata), consolida papéis sociais que atuam nos corpos reais e que ajudaram a singularizar aquela fantasia. De modo que todo fantasma tem seu ciclo virtuoso/vicioso. O papel deve ser tomado como real. Assim como alguns aspectos construção de gêneros são tomados, dentro de uma cultura, como não-explícitos e assim, velados – o exagero nessa construção deve ser tomado como se não fosse um exagero. E de modo que seja possível desejar essa figura e toma-la como se fosse real (isto é, realmente fantasiá-la): a figura da idoll que interpreta a si mesma enquanto papel. Então, há um circuito que influencia as habituações. Habituações que nos constróem como pessoas. Por isso, a tensão cômica: a Yukusa à espreita, o passado e os hábitos de capanga; as reuniões entre homens. Tudo isso frente a uma feminilidade exagerada e que explicita como a separação comportamental entre gêneros é construída. Mas também: e essa masculinidade forçada, de tatuagens cobrindo as costas, de honra e morte, de violência e sentimentalidade dramática? Será que Mari, Chika e Airi notam como antes também estavam sendo, embora implicitamente, colocados em papéis de masculinidade estereotipados?
De fato, na ficção animada podemos testar combinatórias improváveis e até onde, suspendendo a descrença do espectador, vai o limite de atribuição de papéis. O quanto os papéis de gênero podem ser extrapolados, a partir desse ponto de cisão do masculino? Questão presente em vários hentais, especialmente naqueles em que temos a impressão que o diretor não sabe exatamente o que realmente é fazer sexo (algum comentário sobre isso em breve). E onde é difícil de engolir essas construções? Lembro aqui da Saga de Tanya a Má, em que um funcionário mesquinho neoliberal de uma empresa qualquer é transformado numa garota mágica em meio a uma espécie de segunda guerra mundial… E aqui a estranheza do deslocamento é uma figura do confronto do neoliberalismo ateu com um Deus que tudo pode e por isso, arbitrariamente troca corpos e situações (mas mantém a mente). Ou seja, nossa dificuldade de comprar a arbitrariedade da transposição deve ser equivalente ao poder de Deus que explicita poder tudo ao não se importar com a verossimilhança da atribuição de papéis.
Mas nisso temos um caso extremo. A construção é total? Em Gokudolls temos três materiais bastante maleáveis – as pessoas que se dispuseram a aceitar o papel de yakusa e depois de idolls. Pessoas submissas a um chefe e sujeitas à punições e corretivos constantes. Mas nem tanto. No fundo a tensão cômica diz: certamente há papéis fantasia. Mas construído não significa plenamente desconstruível.
E em conclusão, pra quem já tiver visto: não é decerto nenhuma posição progressista por parte do anime quanto à questão da performatividade nos gêneros, ao meu ver. Os gêneros podem ser construídos. Nem por isso deve se considerar que devem ser construídos de outro modo, ou com mais liberdade e variação. É só na alternância e contraste da mulher idoll fantasiosa com a masculinidade ridícula mafiosa que conseguimos o cômico. Isso diz mais da manutenção desses pólos do que de sua dissolução.