O que considero mais notável no segundo filme é uma tensão interna que se manifesta na contraposição de alguns elementos. É como se a narrativa tivesse de manter-se como uma continuação perfeita do mundo do filme anterior, com seus (1) retro-projetores, testes de turing, controle policial, jogos de memórias, animais caros, beijos da morte, robótica subalterna, mega empresas sinistras, futuro asiático noir, final agridoce, falhas irremissíveis, conluios secundários, nomes significativos, trilha “Vangelis”, reverbs monumentais, CEO olímpicos, ponto de vista masculino, consentimento sexual problemático (talvez isoladamente a melhor cena do filme) e incursões “Tom xereta”.
Entretanto, é também como se isso trouxesse com si a necessidade de (2) ação e perseguições, de um cenário opulento e mega-urbano e principalmente, pelo caráter de continuação e derivação da obra, uma garantia de diversão. E aí o trabalho de Villeneuve se mostra profícuo: (3.1) achar uma condução que seja o mais lenta possível, puxar para trás a velocidade das cenas, dar um jeito de monumentalizar o tempo e criar um filme que tenta ser lerdo e ao mesmo tempo adequado. É como uma educação do sentimento de tempo que aproveita-se da familiaridade com o universo e a adequação ao esperado para propor algo como um filme normal, isto é, não necessariamente divertido, mas direcionado ao imersivo e atmosférico. Aí também há uma (3.2) valorização das sombras e dos cantos, a indicar formas e posições de modo similar. A cena desnecessário e forçada do confronto final de K. e Luv é filmada contra a própria ação, como uma sequência que apenas referencia a luta, a atmosfera de luta na chuva e finalmente, a própria existência de tais confrontos em Blade Runner.
Há algumas adições: mesmo que a trilha seja exatamente apenas o necessário, os graves são impressionantes e frutos de um trabalho detalhado e preciso (talvez a coisa que mais gostei de toda a carreira de Hans Zimmer). As texturas tem um poeirento a mais, seja cinza, seja marrom: ao invés de sonhos com cidades chinesas superlotadas, chuva ácida e ocupações de prédios abandonados, sonhamos com a desertificação da lama tóxica e a vida nos despojos e escombros de parques industriais falidos. Por fim, quanto ao machismo do filme, o que posso dizer é que é necessário notar o quanto o personagem principal é o macho idiota, que se acha capaz de resolver problemas, quebrar normas individualmente e perseguir “seu destino” (deixar de ser capacho). Com essas andanças, provoca mortes e revelações não apenas perigosas, mas inteiramente indesejáveis do ponto de vista da boa condução social.
Obs: o primeiro Blade Runner não me impactou tanto, provavelmente porque, sendo novo (nascido na década de 80) minha cena predileta de caracterização de cidade do futuro já era a de Ghost in The Shell e imaginações da Sprawl de William Gibson. A relação de Deckard com Rachel era complicada pelo fato dela ter também função de prostituta no livro, o que penderia no seu papel de cortesã, e nem aqui nem ali me pareceu uma grande questão ou avanço, dentro de um paradigma macho (focado ou na conquista ou em ser atendido), de ter relações com seres cuja humanidade está a um nível a menos, seja de humano a andróide ou de andróide a IA (embora seja dito, ambos os filmes pegam leve no hábito do Phillip K. Dick de ter personagens femininos desequilibrados e traiçoeiros). Ademais, no filme não há o mercerismo nem a máquina de controle de desempenho emocional, nem o fabuloso dilema da ovelha que fazem do livro uma grande obra (me pergunto se a cena da praia em Synners de Pat Cadigan referencia de algum modo o mercerismo de Sonham os Andróides).
{Blade Runner 2049, filme de 164 min, dir. Denis Villeneuve, 2017, nota 7/10}