O fio da navalha que une a lâmina e o corte

Em Lupin o Terceiro: Rajada de Sangue de Ishikawa Goemon (LUPIN THE IIIRD 血煙の石川五ェ門), dirigido por Takeshi Koike, 2017, é nos reafirmado que a mente é lenta. Pois de fato, o tempo do pensamento é lento. E todos os lutadores sabem disso. Por isso treinam exaustivamente as formas e condicionam-se a elas. Na luta, a percepção não deve aparecer de modo completo. O sujeito como percebendo um fenômeno: não há tempo para isso. É preciso trabalhar com o perceber ao nível do quase-automatismo. Um estar imerso que é capaz de responder quase-imediatamente aos desafios. Mas Hawk, o super lenhador loiro, vilão incrível, está em outro nível. Para derrotá-lo, Goemon precisa de mais. Um sentido de antecipação em que o todo se une num acontecimento que integra o não ser fatiado e o fatiar o outro. Mas a imagem de Hawk, implacável, o atormenta e ronda. Para ultrapassar-se, Goemon vai ao mar, de encontro ao tubarão, à cachoeira, sendo atingido por uma tora, ao paredão desolado, ficando à mingua. Finalmente, vê-se de frente à morte, ao reencontrar os Yakusas com os quais trabalhara. Ali, tem uma iluminação. Mas justamente, a iluminação é algo que une o corpo à mente, que o percorre como um reflexo inventivo, que o permitirá emergir como um relâmpago na ação vitoriosa. Esta combinação da criatividade com o automático, de um impulsivo livre da lentidão da consciência mas que a ela se abre, permitirá uma revanche. Será a colocação de si que torna harmônico o desviar e também o desferir. Que cria e é criada pelo acontecimento ao qual se ajusta.

Um entendimento parecido da arte da espada, quando o assunto é desferir o golpe de misericórdia, aparece também na “Lâmina Destruidora de Demônios, Kimetsu no Yaiba (鬼滅の刃), série dirigida por Haruo Sotozaki, 2019 (com cenas de luta magistrais, feliz surpres). Após muito treinar, Kamado Tanjirou também tem uma iluminação, e diz:

“A razão pela qual ganhei foi porque aprendi a detectar o cheiro do fio da abertura. Quando eu batalho alguém e capto esse cheiro e então posso ver essa linha, a linha está conectada, da minha lâmina até a abertura do oponente, e por um momento, tenho um foco e minha lâmina é fortemente atraída. Então, corto a abertura.” (ep. 4)

Nas belíssimas representações visuais desses acontecimentos-desfecho, o fio liga realmente a lâmina à abertura, como extensão do fio da própria lâmina, unido ao ponto fraco ou cego do oponente, a consumar a abertura no sentido heideggeriano (o momento de verdade; aletheia). Ao agir tal como a situação o requisita, lâmina, o fazedor, o fazer e o feito se unem num evento, que emerge: trata-se da arte da espada no seu máximo, momento de poesia (poiesis), união das quatro causas aristotélicas.

Podemos comparar tal visão com a clarividência de Soujiro, super-habilidade do tipo “ensinamento” (口伝, “kuden”, tradição oral – mais sobre isso em breve numa outra postagem), do espadachim do anime Log Horizon. Este desenvolve a capacidade de enxergar projeções dos golpes antes de suas efetivações, permitindo a ele desviar-se destes com precisão. Há uma maneira de enxergar ambas a clarividência e o fio do golpe final de modo a normaliza-los. Tanjirou e Soujiro apenas antecipam a situação. Trata-se apenas da experiência de descobrir-se capaz de prever os golpes e aberturas. Talvez para Soujiro, isso seja uma argumentação válida. Há um acirramento das habilidades de esquiva em um guerreiro experiente, que aparecem como clarividência – tempo adiantado – mas que nada mais são que a exacerbação da capacidade preditiva, que assim se apresenta à consciência a justificar-se como algo sobrenatural. Mas esse tipo de argumentação não faz jus ao que irrompe a partir de Tanjirou. A capacidade que surge da situação toma o corpo assim como um pensamento tomaria o intelecto. É apenas a aparência ao intelecto, em uma leitura de si mesmo na situação, que se apresenta aos espectadores como análise, premeditação, escolha. O destino do desferir fechou-se em uma coreografia que não é simplesmente o dançar de um dançarino. Sujeito e objetivo se fundem nestes momentos, unidos pelo fio condutor, rumo ao corte.

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