ano retrasado eu cancelei meu aniversário. ninguém me parabenizou. eu tive um dia não especial. mas foi um bom dia: comprei um microfone e toquei na galeria hectoliter, em bruxelas (que foi um dos 3 quartas de improviso que não foram gravados…). depois, quis cancelar os próximos 11 aniversários (por que não? por qual motivo manter. se há esforço, ele pode ser no sentido da não existência). na ocasião, escrevi
quem me desejar feliz aniversário será acometido de terrível (porém extremamente sutil) maldição.
mas, como que sentindo que mais afastamento do mundo não iria me beneficiar em nada, e prevendo que cancelar daria mais trabalho do que manter, mantive. ano passado, até realizei um sonho.
lembro da cena do filme melancolia, o final. é que daria trabalho demais não fazer uma cabana mágica. 33 anos bem tematizados na canção dos titãs.
dizem que a morte é a sina do colecionador de livros cujas estantes não têm mais sequer um livro não lido. como a grande maioria dos colecionadores têm o hábito da aquisição constante, a chamada maldição da biblioteca conhecida não chega nem mesmo a ser um tópico de debates e profilaxias, exceto em obscuros compêndios e sociedades de livreiros sovinas. e no entanto, dado o mútuo interesse, as trocas de indicações e as especulações sobre paradeiros de edições raras, acabamos ouvindo comentários dispersos aqui e ali.
de um certo senhor de gante soube-se que a vida inteira só comprou livros usados, todos, segundo ele, devidamente lidos – o senhor supostamente certificava-se fazendo perguntas inconvenientes sobre os conteúdos aos vendedores, além de conferir rasuras e trechos sublinhados. mas o que ele não se lembrava era de um antigo e pequenino livro, do espólio do avô e escrito pelo próprio, edição limitadíssima, capa dura, costura, páginas grossas, amareladas e com manchas em marrom, cheirando mofo. é dito desse senhor de gante que ao comemorar o aniversário do avô, morreu. no mesmo dia encontraram o tal livro aberto na cabeceira de sua cama. as páginas a mostra descreviam supostas propriedades terapêuticas ligadas ao consumo regular de produtos derivados da semente da mostarda.
dizem: nunca subestimem a capacidade de um ser humano ser imprudente. a imprudência humana não tem limites. se a maioria esmagadora dos colecionadores tem pelo menos um terço de livros não lidos e um quinto intocado, há de se observar os tempos de escassez monetária, as aquisições em sebos – usados, isto é, com grande chance de estarem já lidos -, além dos empréstimos repentinos. o pior tipo de amigo ao qual se empresta um livro é aquele que rapidamente lê e o devolve. felizmente, a maioria dos emprestadores se contenta em pegar o livro e esquecê-lo em sua própria estante, ou ainda jogado dentro do armário, na sessão de roupas de inverno.
em tempos de desespero, lembrem-se de observar o ávido hóspede que se embrenha na sala de estar, retira os exemplares mais brilhantes, das páginas mais alvas, e quando você menos espera – quando vai ensaiar o final de semana em são paulo, quando resolve passear a tarde inteira no zoológico, quando vai visitar um colega afim de produzir uma cerveja tipo ale – senta-se no sofá e devora os livros apenas folheados, deflora aqueles ainda virgens.
ler você mesmo todos os livros da estante é um difícil e elaborado ato suicida, de tom franciscano, de um empenho e força de vontade ímpar. mas deixar inúmeros livros não lidos não significa de modo algum uma vida longa e próspera.
atualmente, na minha estante pequena estante de belo horizonte existem 129 livros. acredito que 36 destes nunca foram lidos.
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para matthias koole por ocasião de seu aniversário.