mais impostos, menos pão

há um panelaço contra marcado para 20h30. sentindo-se inspirado, ele então marca outro, a favor, para 21h. em 20h30, fora bolsonaro, panelas, xingamentos. nada de muito efetivo ou revolucionário. mas confirma um clima. marca um limite para alguns. e se eventualmente se estender por meses, talvez gere um esgotamento mental difícil de se opor. 21h, como disse joão flor de maio, o som do corona vírus se espalhando. mas tem gente que diz que não. aqui e ali mito, aquela situação deprimente de ouvir um ridículo protesto que se auto-refuta, mas não se anula. fica esse resíduo do patético, do tacanho. e então lembro do início de sylvia & bruno do lewis carroll, na qual os cidadãos gritam: mais impostos, menos pão!

é possível pensar uma estratégia conceitualmente mais ousada: o oponente propõe que seu contra-panelaço seja no mesmo horário que aquele ao qual é contra. assim, existiriam dois panelaços às n horas, um contra e um a favor (ou contra o contrário). mas como distinguí-los? quem pensa nisso já se equivoca: o importante não é que sejam discerníveis, mas que possam ser mobilizados, uma vez que indiscerníveis.

[dos rascunhos, junho de 2021]


postado em 19 de maio de 2024, categoria comentários : , , , ,

torrada

O quanto essa indagação [“seria possível algo ser tanto uma obra de arte quanto um objeto não-artístico?”] não se assemelha àquela em que é perguntado se possível ter e comer o bolo? Imaginemos que temos um bolo, uma fatia de bolo, para simplificar, ou melhor, uma torrada, que comeríamos junto ao café produzido tanto para que se tenha um bom café como para que seu filtro de papel, usado, seja apropriado e utilizado para a criação de uma obra de arte visual. Após você consumir a torrada, não haverá mais a torrada. Não havendo mais torrada, você não mais a possuirá. Assim, possuir (ter) e consumir (comer) são excludentes. Se a relação entre obra de arte e contraparte material for definida de modo similarmente excludente, então ser uma coisa implica não ser a outra. A ideia de objetos não-artísticos já indicava isso. Só que eu sou um sujeito um tanto insistente, com uma boa dose de teimosia, e quero explorar esses meandros até extrair daí pensamentos imprevistos. Lembro do clássico Alice Através do Espelho, em que a raínha branca declara que a regra para a geléia é que se tenha ontem e amanhã mas não hoje1. Assim como a geléia da raínha branca, a torrada pode ser retida. Reter a torrada é comê-la, mas apenas amanhã, nunca hoje. A comida mantém sua função, mas a ação que a consolida é postergada indefinidamente. A intenção prévia não se converte em intenção em ação.

Assim elaborado, esse caminho parece introduzir mais confusão do que direção. Reter um objeto como não-artístico seria tratá-lo sob a promessa do artístico mas não usá-lo como objeto cotidiano. Não apenas é estranha a diferenciação entre promessa e efetização quanto a tomar algo como artístico (o que seria isso?), como é estranho que um objeto cotidiano não seja usado quando poderia. Se alguém perguntar porque a torrada, já mofada, não foi jogada fora, seria um tanto estranho dizer “porque vou comê-la amanhã”2. Não faz muito sentido fazer e não comê-la. A não ser que a torrada seja guardada em condições muito específicas, em um ambiente controlado onde ela se mantenha constantemente comestível. Talvez o dono da torrada pense: “algum dia comerei a torrada”. Mas nesse caso a torrada é parte de uma situação inteira, sendo apenas um dos componentes de uma performance que não tem nada de habitual e cotidiana.

[1 “The rule is, jam to-morrow and jam yesterday – but never jam to-day.” (Carroll, 1994, p. 78). A frase responde a um trocadilho possível entre inglês e latim, o que não vem ao caso.]

[2 Exceto que Carolina Deptulski, quando criança, ao receber um conjunto de chocolates coloridos, resolveu guardá-los para os comer em uma ocasião especial. Como ela tinha os chocolates como muito especiais, a ocasião especial à altura acabou não chegando nunca. Quando desistiu de esperar os chocolates já estavam a muito mofados e curiosamente tinham perdido suas cores, todos aparentando um cinza nada convidativo.]


postado em 6 de dezembro de 2021, categoria aforismos : , , , , ,

do silêncio, poesia

se existe alguma chance de que a linguagem primitiva / antiga esteve mais próxima do ser, como queria heidegger, ou então, como dizia emerson: “language is fossil poetry“, de que no começo, era a poesia, uma coisa é certa para mim: isso só é concebível pensando os antigos, os originários, como humanos lacônicos, imersos em silêncio, com apenas algumas raras ocasiões de necessidade comunicativa; não o dizer do modo antigo que aproxima, mas o não dizer.

arthur, em sylvie e bruno, de lewis carroll, relaciona esssa distância com a instituição da igreja.

Por que razão não nos deixam gozar as belezas da natureza sem que o tenhamos de o dizer a cada minuto? Por há-de a vida ser um longo catecismo?


postado em 28 de novembro de 2016, categoria comentários : , , , , , ,

presente para paula

com o grande sucesso dos dois livros que dei como presente de aniversário para paula gontijo (o atelier de giacometti, de jean genet, e octaedro, de julio cortázar), e também de um terceiro que acabou por ser um presente desta para cori (o guia dos mochileiros da galáxia, de douglas adams), o terceiro/quarto deveria então estar a mesma altura, cumprir a promessa, viver às expectativas – o que era um problema (na minha caderneta está anotado: “ela quer ganhar um livro que seja sensacional. mas não é só isso. ela quer que o livro seja também uma descoberta”).

o presente, então, como problema, exigia uma solução cuidadosa, estudada. primeiro, eu evitaria livros muito complexos, difíceis de ler e sobretudo, extensos – um presente deve ter sua leveza (mesmo que seu humor seja melancólico ou triste; na literatura existe essa possibilidade da tristeza leve, uma tristeza projetada a partir de um texto leve). segundo, deveria ser uma obra ficcional, a fim de evitar concepções mais utilitárias; simplificadamente: um presente deve pender mais para o mundo do lazer e do que o do trabalho – um presente deve ser como pequenas férias.

paula havia me emprestado uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, de clarice linspector, comentando de como a personagem lóri era querida e por um tempo após a leitura do livro, a acompanhava, a assombrava (no bom sentido). pensei em personagens marcantes para mim, com resultados desanimadores – porque ou os personagens tendiam ao infantil (maneco caneco chapéu de funil, por luis camargo, tom bombadil, coadjuvante em senhor dos anéis 1, de j. r. r. tolkien) ou eram realmente desanimados (por exemplo, ricardo reis em o ano da morte de ricardo reis, de saramago); de fato, personagens marcantes nunca foram o meu forte, em se tratando de leituras.

mais tarde, entretanto, numa ida a livraria (qual?) para pesquisar títulos, vi uma edição que eu não conhecia d’as cosmicômicas, de italo calvino. comprei então o todas as cosmicômicas, coletânea que indicava muitas histórias da série que eu ainda não havia lido – e nem sabia da existência. foi então que me veio a lembrança da forte impressão que me causou o personagem qfwfq, quando li a primeira série de contos, por volta de 2002. a união de ciência fajuta, construção lógica, humor e absurdo, mais um personagem centralizador, me foi altamente influente, e lembro ter composto o quadro de inspirações para minha antiga banda o “mundo” entre aspas, bem como para as minhas primeiras colagens, e em especial o espetáculo hipgnik e os prigoginistas vol.3 “a ressurreição” (cujo vídeo de π foi incluído no meu dvd de vídeo-artista).

em lewis carrol, eugene ionesco e douglas adams, os personagens não se destacam do fundo; em calvino, com qfwfq, a personificação do grande mentiroso atinge um do seus pontos altos, no melhor estilo d’as aventuras do barão de münchausen, filme que eu sempre adorei, dirigido por terry guilliam, mas cujo livro dei pouca trela (eu nunca cheguei tampouco a assistir à versão alemã de 1943, supostamente encomendada por goebbels e certamente dirigida por josef von báky).

é hoje patente para mim que hipgnik como nome surgiu de uma fusão de henrique com qfwfq, embora eu não fosse de modo algum o líder do agrupamento, nem me visse como principal integrante.

então, tinha um bom candidato a presente, mas não essa edição nova. a antiga, mais sucinta, sem episódios tangenciais e contos soltos, é sem dúvida mais equilibrada. todas as cosmicômicas, ao adicionar outras e t=0 e ainda outras outras, pesa nas bordas, continua depois de já ter acabado – o livro pede esforço para ser lido de cabo a rabo. o jeito – gentilmente roubar a edição simples e antiga de meu pai, pedindo à minha mãe para mandá-la de campinas para belo horizonte.

mas seria isso mesmo? em uma visita a um sebo no maletta e em uma livraria no shopping boulevard, encontrei dois bons livros. ainda assim, não tinham o sentimento adequado (buzzi e laferrière: comento nessa outra postagem sobre eles). em são paulo, numa das poucas livrarias que ainda gosto (embora com muitas reservas – o ramo virou um empilhamento vampiresco de empresas capitalistas sem amor pelos livros que vendem), a martis fontes paulista, folheei um murakami. nunca havia lido nada dele. minha querida sputnik: parecia familiar, e entretanto nem sabia do que se tratava antes de abrir. não me desagradaram as 5 primeiras páginas, e o assunto era apropriado: relacionamentos e o impacto que acontecimentos dentro deles causam. sendo a paula uma das poucas pessoas as quais confio para falar sem reservas desses assuntos, comprei o livro. depois lembrei – minha mãe tinha aquele livro. a tristeza e sentimento de perda que resultavam dos dois acontecimentos do livro, e o modo como um condicionava o outro, ressoaram em mim com beleza e melancolia. talvez 6 meses atrás eu não pudesse entender sobre o que se tratavam. certamente seria bom saber a opinião de paula sobre isso!

e então, por e-mail e facebook, conhecidos, conhecedores do meu hábito como comprador, me indicaram uma promoção da cosac nayfi. eu estava relutante, ainda em virtude da proporção entre lidos e não lidos, indicada naquele meu artigo. com o terceiro convite, vindo de uma terceira pessoa, cliquei e surfei o sítio. nada muito animador – a coletânea do bento prado jr. não estava em promoção; o sartre disponível consistia em textos obscuros sobre literatura. na coleção de poesia já tinha comprado todos os itens que desejava. olhei começo, de nathalie quintane, a $5; seria a terceira vez que adquiria esse livreto. cliquei duas vezes. é sempre bom tê-lo para presentear (além de andrea krohn, quem sabe paula e também luiza – todas as pessoas queridas deveriam lê-lo). crise casaco. exceto como um operário numa sexta-feira. bioton é o prefeito e bioton sua mulher. cães não receberam nomes mais singulares que rex… pena que é tão pouco traduzida (e meu francês horroroso/inexistente).

seriam então três presentes? não seria isso uma variação daquele drama antigo: “afogá-la num mar de presentes”? ou então, ao contrário, aumentar ainda mais as apostas para 2016? seria melhor escolher apenas um, ou até mesmo dois? mas quais? desistiria eu de dar presentes e apresentaria apenas esse texto? (seriam então virtualmente quatro presentes?) “eu adoro textos, você escreve bem”, ela disse. quanta vaidade da minha parte! apenas um texto. esse texto, de presente – eu, o grande escritor, presenteio a ti um texto sobre a difícil arte de escolher-te um presente. que ideia!

ao final, isto é, já agora, poderei (posso) dizer: durante o processo li belos livros, lembrei de outros, até mesmo descobri dois autores – de modo que, presenteando livros ou não, saio presenteado eu mesmo. feliz aniversário, senhorita.


postado em 22 de abril de 2015, categoria crônicas : , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , ,