a morte e o colecionador de livros

dizem que a morte é a sina do colecionador de livros cujas estantes não têm mais sequer um livro não lido. como a grande maioria dos colecionadores têm o hábito da aquisição constante, a chamada maldição da biblioteca conhecida não chega nem mesmo a ser um tópico de debates e profilaxias, exceto em obscuros compêndios e sociedades de livreiros sovinas. e no entanto, dado o mútuo interesse, as trocas de indicações e as especulações sobre paradeiros de edições raras, acabamos ouvindo comentários dispersos aqui e ali.

de um certo senhor de gante soube-se que a vida inteira só comprou livros usados, todos, segundo ele, devidamente lidos – o senhor supostamente  certificava-se fazendo perguntas inconvenientes sobre os conteúdos aos vendedores, além de conferir rasuras e trechos sublinhados. mas o que ele não se lembrava era de um antigo e pequenino livro, do espólio do avô e escrito pelo próprio, edição limitadíssima, capa dura, costura, páginas grossas, amareladas e com manchas em marrom, cheirando mofo. é dito desse senhor de gante que ao comemorar o aniversário do avô, morreu. no mesmo dia encontraram o tal livro aberto na cabeceira de sua cama. as páginas a mostra descreviam supostas propriedades terapêuticas ligadas ao consumo regular de produtos derivados da semente da mostarda.

dizem: nunca subestimem a capacidade de um ser humano ser imprudente. a imprudência humana não tem limites. se a maioria esmagadora dos colecionadores tem pelo menos um terço de livros não lidos e um quinto intocado, há de se observar os tempos de escassez monetária, as aquisições em sebos – usados, isto é, com grande chance de estarem já lidos -, além dos empréstimos repentinos. o pior tipo de amigo ao qual se empresta um livro é aquele que rapidamente lê e o devolve. felizmente, a maioria dos emprestadores se contenta em pegar o livro e esquecê-lo em sua própria estante, ou ainda jogado dentro do armário, na sessão de roupas de inverno.

em tempos de desespero, lembrem-se de observar o ávido hóspede que se embrenha na sala de estar, retira os exemplares mais brilhantes, das páginas mais alvas, e quando você menos espera – quando vai ensaiar o final de semana em são paulo, quando resolve passear a tarde inteira no zoológico, quando vai visitar um colega afim de produzir uma cerveja tipo ale – senta-se no sofá e devora os livros apenas folheados, deflora aqueles ainda virgens.

ler você mesmo todos os livros da estante é um difícil e elaborado ato suicida, de tom franciscano, de um empenho e força de vontade ímpar. mas deixar inúmeros livros não lidos não significa de modo algum uma vida longa e próspera.

atualmente, na minha estante pequena estante de belo horizonte existem 129 livros. acredito que 36 destes nunca foram lidos.

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para matthias koole por ocasião de seu aniversário.


postado em 21 de dezembro de 2014, categoria prosa / poesia : , ,
  1. henrique iwao » Blog Archive » adeus 2014 disse às 22:49 em 28 de dezembro de 2014:

    […] a morte e o colecionador de livros; […]

  2. henrique iwao » Blog Archive » presente para paula disse às 19:11 em 22 de abril de 2015:

    […] eu estava relutante, ainda em virtude da proporção entre lidos e não lidos, indicada naquele meu artigo. com o terceiro convite, vindo de uma terceira pessoa, cliquei e surfei o sítio. nada muito […]