Quando Deleuze se desencanta de Bataille, argumenta que o mesmo protege e prolifera “segredinhos sujos” (creio que em Conversações). De fato, se pararmos para pensar qual a estrutura que Bataille mobiliza para falar em transgressão, perceberemos que é aquela em que há duas esferas separadas. O mundo do trabalho estabelece seus interditos e organiza o social, “a cultura”, contra a qual as transgressões e as festas dispendiosas atuam, no erotismo. O humano que projeta e segue projetos é o humano do mundo do trabalho, enquanto que o humano erótico é aquele que transgride, em maior ou menor grau, tabus do mundo do trabalho. O que Deleuze passa a não aceitar, quanto à Bataille, é que este último acaba defendendo o lugar do trabalho como apartado do erotismo, e ao fazê-lo, transforma-o em condição para o erotismo, como se fosse necessário sempre o pólo oposto. Bataille então reforça como natural, isto é, inerente ao modo social, a condição de separação do trabalho e do dispêndio. É desse abismo, dessa tensão, que é possível então dialetizar, passar de um ao outro, transgredir. Deleuze obviamente, vê-se contrariado: ele quer a possibilidade de outras articulações no tecido social, e de outras tensões e passagens e misturas entre o mergulho na morte (erótico) e o caminho para a morte (trabalho).
Em Sarazanmai, a dualidade que permite a construção da transgressão é aquela entre a conexão social mais o amor contra a desconexão mais o desejo. Esse desejo é aquele que, desconectado das relações de conexão social efetiva, quer repetir-se, por ser fantasia descolada. Mesmo que motivado por algo que gosta muito, ou uma ação passada, ela torna-se fantasmagórica, torna-se uma maneira de abstrair a complexidade do presente, simplificar, determinar para sempre. Então, por tornar-se etéreo demais, muito projetado, muito “da cabeça”, em um primeiro momento não pode ser realizado, e então vai ganhando ares de obsessão, aquela falta, aquele evento que não acontece, que nos atrai com ares mágicos. Mas e se acontecesse? Então é um desejo que deseja sua repetição constante (porque ele, em primeiro momento, nem chega a se concretizar). Mas, na desconexão, que tipo de realidade ele mobiliza? Na verdade, pouca, tanto que ele habilita as pessoas a serem capturadas pelas forças inconscientes e transformadas em mobilizadores de zumbis, pelos agitadores do desespero.
O cu é o local do escondido, do recôndito, do segredo. Lá o segredo é sujo. Ele suja-se na defecação. O processo psicanalítico de retirar o segredo, alojado literalmente no ânus, é aquela que revela pela palavra, pelo conhecimento. Essa revelação recoloca o desejo no contexto social, das conexões sociais, e assim diminui aquilo que se potencializava nele, por apartar-se do social. Afastado do imaginário do puramente proibido, inalcançável, mas que por isso tinha de impor-se, abstratamente, aquele desejo mostra-se agora como uma excentricidade, uma falta de tato social, um tabu levado a sério demais, uma simples dificuldade de se relacionar.
Pois do outro lado, a conexão desfaz o desejo e leva ao amor, que é disponibilidade, flexibilidade e lida com o concreto, que justamente é mutável, então sempre renovável, diferente e irrepetido. O diretor Kunihiko Ikuhara sabe, entretanto, que o antagonismo não é do sofrer e sorrir; mas do desespero ligado a uma fantasia, da falta abstrata afirmada, contra a aceitação da presença ou falta concreta sentida. E sair da repetição da falta, do desejo fantasioso, é ganhar um futuro, imprevisto, mas traçado nas conexões que vão se tornando possíveis (testáveis) ou presentes. Nesse sentido, podemos dizer que passar pela adolescência de forma saudável é entender que a transgressão que surge dessa polarização precisa ser dissolvida para dar lugar a modos mais maduros de lidar com o desejo. E que isso passa por fomentar relações que não perdem a dimensão do social.