Após o traumático evento em que, em um espaço obsoleto, uma das garotas deixa seu corpo digital separar-se do material e entra em coma, aparecendo como “sem dados” para os que usam os óculos de realidade virtual, os pais, preocupados com a possibilidade de falhas de segurança e atitudes irregulares no ciberespaço, confiscam os visualizadores de realidade aumentada dos filhos.
É sintomático que, durante essa cena, o pai de Daichi diga: “se vocês estiverem usando esses [equipamentos] sempre, não vão mais conseguir distinguir o que é a realidade do que é ilusão”. Mas aqui perguntamos: a realidade não se mede pelos efeitos? E justamente esses efeitos não são a causa do confisco dos óculos? O fato de que a lendária senhora Michiko teria raptado a alma de uma das crianças, que ela esteja agora hospitalizada?
Logo em seguida vemos uma cena em que a mãe de Yasako lhe da um abraço, ao abordar a morte do pet da filha, Densuke, cachorro virtual. Yasako lembra da dificuldade inicial, quando mais nova, de entender que não seria possível sentir pelo tato os pelos do bicho, quando o acariciava. Sua mãe, sabendo disso, conclui “são as coisas quentes, aquelas nas quais você pode acreditar. As coisas que você pode abraçar, e [então] sentir um pouco de cócegas ou um pouco de dor” (…) “Isso que significa viver”.
Essa é a demagogia infantilista dos adultos. Definir a realidade de modo absolutamente irrealista, ingênuo e contrário ao modo como eles agem como adultos. Seria ser adulto negar a realidade em que se está metido? Ou é apenas hipocrisia direcionada especificamente às crianças? Quando pensamos que as relações de responsabilidade e valor não produzem calor, e que as intenções, base de como a vida em sociedade está organizada, não são visíveis; que é preciso lê-las, adiciona-las ao mundo, “por cima dele”, podemos repensar a posição deles. Pois o que deveriam estar dizendo é: vocês crianças que, usando esses óculos, imersos em arte locativa, estão a projetar valores, a decidir o que é importante… Vocês estão montando um sistema de responsabilidades, atribuições e valores paralelo ao nosso. E tal como o nosso que projeta, nos objetos e acontecimentos, intenções, razões, comprometimentos, punições, recompensas, esse mundo etéreo, o qual é preciso de uma visada especial para acessar, bem, esse “mundo por cima do mundo”, ele molda nossas ações, nossas atitudes, e eventualmente nos machuca. Mas vocês são crianças, e devem subordinar suas intenções às nossas, seus valores aos nossos. Esse é o custo do alentamento que nós vos fornecemos. E é para vosso bem, vossa proteção: nosso mundo adulto ainda vai lhes causar graves problemas; é importante que vocês se conformem somente a ele, evitando complicações e confusões.
E então, no mesmo episódio, a irmã mais nova Kyoko diz de Densuke que ele era fofo, cheirava bem e era quentinho, recusando-se a invalidar sua relação com o cachorro virtual, a invalidar a rede intencional-conceitual-emocional que ela criara na sua relação com o pet e as outras crianças. A conclusão de Yasako é definidora: se coisas que não posso tocar são ilusões, essa dor pela perda de Densuke é também ilusória. Isto é, as motivações são ilusórias. Mas se eu pensar bem, dentre as coisas que não podem ser ilusórias, que certamente existem, não está justamente essa dor no peito? E ela acha seu cogito: a única coisa que há de real aqui e agora é o luto, a dor no meu coração. E uma vez estabelecida essa primeira verdade, é preciso segui-la. De onde essa dor vem, deve haver outras verdades e algo de real. E assim: é preciso voltar a usar os óculos. É preciso achar o lugar certo, esse acontecimento em que as relações trocam de sinal, e alguns efeitos podem ser desfeitos.
Dennou Coil, 電脳コイル, a bobina da mente elétrica, série de animação de 26 episódios, 2007, criado e dirigido por Mitsuo Iso.