O novo anime de Shinichiro Watanabe (Cowboy Bebop, Samurai Champloo, Macross Plus) já de cara traz um visual deslumbrante, e uma montagem ágil e inteligente, que alterna entre cenas de modo preciso, sem perder tempo algum, pontuando emocionalmente mas não deixando nada arrastar. Os personagens também são bem definidos e carismáticos a seu modo. Uma coisa, entretanto, já me incomoda.
No segundo episódio se delineia, na visita da aspirante a pop star (Angela) ao produtor frio e solitário (Tao), um antogonismo. Tao é um homem de negócios cercado da tecnologia, e declara: 99% dos hits são compostos por inteligências artificiais; com um banco de dados suficientemente vasto, um trabalho de amostragem cuidadoso e análises numéricas inteligentes, é possível compor a canção de sucesso que emocionará a população. Mesmo a comoção esperada é parametrizável, bastando ajustar corretamente seu fator.
Acontece que Carole & Tuesday estariam prestes a mostrar que, contra uma música de inteligências artificiais eficientes, o calor humano advindo de um encontro improvável e imediatamente empático, de um elo emocional que é sentido como certo, de almas gêmeas que se encontram (o argumento de Aristófanes no Banquete de Platão) deverá, este sim, produzir o derradeiro hit. Então ao invadirem um teatro para poderem ouvir como soaria a música em um piano de cauda, por pura extravagância, são filmadas por um influente desenhista de som. Assim, o vídeo acaba virando assunto do momento nas redes sociais e elas começariam sua jornada para dentro da indústria musical.
Aqui entretanto vale, ao antecipar o desenvolvimento desse possível antagonismo, observar de que posição esse antagonismo é colocado. Primeiro, porque Carole & Tuesday virão a fazer parte daquele 1% que não é puro cálculo, o 1% não garantido que, como resto, faria parte da estrutura 1 para 99. Mas não seria esse 1% uma contraposição de sustentação, que compõe o todo, cuja dominação pela indústria não é total, porém justamente, quase-total, havendo excessões que antes confirmam a regra?
Entretanto, fosse realmente isso, a música que tocavam na cena não seria tão explicitamente já algo tão produzido, em que é garantido sabermos que tanto representa quanto amostra o que é uma canção pop, ao ponto de, com ares de Alicia Keys, tentar exemplificar um sucesso. Ora, o diretor poderia ter contratado um duo mais particular, que soasse mais pessoal, inventivo, menos convencional. Mas não, o que aí ouvimos é algo que, via de regra, poderia muito bem ter sido composto por uma inteligência artificial; algo que soa como o que a indústria cultural faria, de modo a continuamente “expropriar o esquematismo”. Seguindo a Dialético do Esclarecimento, de Adorno/Horkheimer, na ponte da sensibilidade para o entendimento, as músicas seriam pré-arranjadas para já virem pré-interpretadas, isto é, ajustadas de modo a produzirem interpretações convenientes, que usurpariam o ouvinte da capacidade de tirar significados por ele mesmo segundo sua liberdade real. Estas músicas já fariam o ouvinte se comover, de antemão, de forma a controlar a interpretação que este viria a ter e garantir previsibilidade na recepção dos seus produtos. Mas para tal seria importante domesticar o estilo, facilitando operações de padronização e medição que garantiriam a escala industrial.
Assim, se este 1% tece um antagonismo ao 99%, ambos encontram-se sob o fundo ideológico do pré-fabricado, daquilo ajustado para ser um hit. Mesmo que Carole & Tuesday venham a compor, enquanto personagens, hits por elas mesmas, sua imaginação já é apenas um espelho daquilo que a indústria cultural e suas inteligências artificiais vem produzindo constantemente. Como humanas, apenas preenchem um espaço marginal num modo de produção que já estaria inteiramente, 100% tomado por formas de manipulação retroativa. Elas podem compor o que querem, o que sentem ser importante e significativo. Mas o reverb, os valores de produção na cena no teatro indicam: o que querem é o que foi requisitado e o que sentem é o que as induziram sentir.
Porfim, não seria a inteligência artificial emotiva, tal como descrita pelo desenhista de som, um sinal de que no cálculo é preciso introduzir aqui e ali imprevisibilidade, de modo a comover mais, comover melhor, pré-comover cada vez mais eficientemente…