Quando abordamos o binômio economia e saúde, geralmente lembramos do quanto subordinar a saúde à economia é perverso e a médio, e até mesmo curto prazo, burro. Acabamos então argumentando a fim de inverter a subordinação. Primeiro, sobretudo, porque é preciso estar vivo para ter uma vida, quanto mais, estar saudável para ter uma boa vida. Economicamente, pessoas doentes não produzem muito nem trabalham; os ganhos funerários necropolíticos não são capazes de compensar aquele que seria, em tese, o locus da produção de valor – o humano. Mas este núcleo o seria para sempre?
Quando Heidegger reclama do último Nietzsche como aquele que almeja esse cacófono horrível e oportuno, a vitória total do ente contra o ser, ele está sendo humano, demasiado humano. Por que não optar que a economia continue, separada da saúde? Não era mais ou menos assim até agora, uma relação difícil? Que tipo de operação “landiana”, de aceleração do econômico, seria necessária, afim de desvincular trabalho e valor financeiro? E o dinheiro pode inclusive continuar circulando, sem trabalho, em rendas universais para os humanos, enquanto que, emancipada, a economia, aquela que importa, que sustenta as outras, continua.
Não quero dizer que Nietzsche via o futuro nisso. O ser humano liberado às forças impessoais e cósmicas sonhado por ele não é o ponto, mas sim o recolhimento do humano para a saúde. 引きこもり＋檄文 (MHP – manifesto hikikomori-positivo): superada a solidão e a depressão, liberamos a economia para rodar longe de nós, em máquinas cibernéticas, drones de serviços e inteligências artificiosas. E também daí, os processos de cuidado, convivência e burocracia, típicos do trabalho humano, e os processos de capitalização da insegurança, típicos das finanças, podem aos poucos serem deixados de lado, marginalizados, para atingirmos a esfera da pura produção (identificada como “de produtos = objetos” ou “de eventos = ações que são meios para a produção e complexificação dos produtos”).
Talvez isso que tenha acontecido na origem da construção da cidade labirinto global em constante expansão de Blame!, mangá de Tsutomu Nihei (弐瓶 勉). Pois, de alguma forma, o processo urbanístico tornou-se autônomo e prosseguiu, enquanto os humanos, recolhidos, passaram a habitar áreas restritas. Milhares de anos se passaram e aparentemente o artificial cobriu tudo o que nós ainda vemos como natural, com tubos, concreto, metálicos, alimentação sintética etc. As máquinas, os construtores e os guardas, nos parecem descontroladas. Mas é porque nos recusamos a vê-los como maximizadores de urbanismo bricoleur. No mangá há toda uma condução de videogame, em que o personagem está num pesadelo “quem explode quem”, cheio de larvas e humanóides monstruosos, procurando uma maneira de desabilitar o sistema de segurança que impede os humanos ou pós-humanos de ter uma vida não pós-apocalíptica (uma vida que floresce). Essa maneira depende de uma reconexão com o passado. Enquanto isso, a maioria de nós anda esquecida do fazer técnico, vivendo um estranho estado de caçados coletores, a pegar armas, mantimentos sintéticos e dispositivos pela cidade, como quem colhe frutas em uma árvore (cheia de cobras).
Agora, vamos re-imaginar Blame! Pois não podia a cidade ter se desenvolvido sem esse clima opressor e perigoso, esse tempo de mortalidade alta o suficiente para impedir o desenvolvimento pleno da cultura? Uma vitória não necessariamente implica supressão, pode apenas ocasionar um desdém benéfico. E então, a vitória total do ente poderia coexistir com os resultados da adoção de um manifesto hikikomori-positivo. A AVTE acontecer junto ao MHP, renovando a natureza no artificial, mas mantendo-nos saudáveis, em bolsões de saúde. E depois, como queria Constant, o situacionista, uma nova babilônia, grande cidade playground global.
