1. Há uma interessante ideia circulando: não seria melhor considerar o estado atual como uma sindemia, ao invés de uma pandemia? Isto é, uma situação onde diversos fatores contribuem para o estabelecimento de problemas de saúde na população. Decerto o vetor principal dessa sinergia debilitante é o Corona Vírus. Mas ele interage com condições sociais e econômicas e de saúde em geral, incluindo outras doenças, de modo a amplificar o impacto destas, e possivelmente, de modo a que estas também aumentem o seu impacto na população.
2. Embora não tenha jogado instâncias da franquia Final Fantasy, lembro de um longa de animação de 2001, The Spirits Within, que emprega um estilo 3D de videogame que nunca me convenceu. No longa, existem fantasmas alienígenas cujo único objetivo parece consumir a alma dos seres corpóreos animados, assim os matando. O interessante é que eles não são visíveis a olho nu. Sua presença é dada por um rastro de morte e destruição. Similarmente, em um anime que se destaca pelo impressionante primeiro episódio, Ga:Rei Zero, os espíritos só podem ser vistos por alguns, detentores de equipamentos ou possuidores de energia espiritual incomum. Mas de novo, quando um incauto olha uma cena de batalha absurda, onde os inimigos parecem ter sido removidos, ainda assim ele vê morte e destruição de seus pares humanos, e sabe que se encontra em grande risco.
3. Pergunto-me, entretanto, se não há retratos mais sutis ou ainda mais radicais desses inimigos invisíveis. Pois, nesses dois casos, existem evidências imediatas de que algo está muito errado, e indícios o suficiente para rapidamente acreditarmos que se tratam de intrusores. Sejam estes de natureza sobrenatural ou alienígena, são um elemento estranho, alheio à vida comum. Não são como os ratos da idade média que, carregando pulgas que por sua vez carregariam as bactérias responsáveis, pareciam aos habitantes elementos razoavelmente inofensivos. E a falta de higiene e condições sanitárias não eram vistas como fatores que potencializavam a praga bubônica. Curiosamente, embora os ratos e as pulgas fossem visíveis, mas a bactéria não, não faltavam teorias apontando para outro elemento invisível, a vontade de Deus, ou a outros dificilmente observáveis e de determinação obscura, como o movimento dos astros, atribuindo a esses a causação da peste.
4. Se “só acreditar no que os olhos vêem” sempre foi um dito popular bastante inadequado, temos, é claro, no vírus, algo ainda mais obtuso e não-visual que pulgas e bactérias. Mas tal como outrora Deus e o zodíaco, não nos parece especialmente problemático postular entidades não observáveis, se com isso ganhamos poder explicativo sobre fenômenos. Porque as explicações levam ao planejamento estratégico e a planos de ação. Ou ao menos, é o que o bom senso diria. Como, entretanto, o governo atual brasileiro não possui planos e planejamento, mesmo contando com já mais de 150 mil mortes nessa pandemia, toda menção à ideia de bom senso causa um desconforto. Agora, antes que cair na armadilha de defender que o bom senso teria se separado do senso comum, quero propor que essa bravataria extremamente ignorante de nossa junta de governo militaresca atual, é na verdade um dos elementos da sinergia em meio à pandemia. Porque a bravataria é muito mais que a insensatez. Ela é a defesa insensata da insensatez, com objetivos escusos e com tons desumanos, necropolíticos.
5. Muitos se perguntaram e ainda se perguntam como chegamos nisso. Nessa situação governamental. Porque muitos elegeram, em diversos níveis, sujeitos corruptos, ignóbeis e ligados a milícias, portadores de discursos não apenas incongruentes, mas discriminatórios. “É como se um vírus da brutalidade e obscurantismo tivesse se espalhado”, ouvimos, aqui e ali. E não faltou quem diganosticasse, além da herança colonial e dos desdobramentos ideológicos de uma situação de desigualdade social extrema, somada a uma transição da ditadura para a democracia marcada pela impunidade: “trata-se de uma engenharia social; da criação de viéses cognitivos, usando de técnicas de fire hosing“. Ou seja, fake news! E se tudo isso lido rápido parece um pouco delirante, o que dirá das atitudes e discursos daqueles tomados por esse obscurantismo? Sabemos que expor as pessoas a uma quantidade enorme de informações falsas e extravagantemente falsas tem efeitos psicológicos negativos. Sabemos que há interesses de mobilizar ansiedades, inseguranças, dificuldades cognitivas e temores de modo a provocar comportamento de massa, mesmo quando alguns achavam isso improvável em meios de comunicação distribuída como o zap etc. Mas, lembrando dos nossos colegas Europeus da idade média, em tempos de guerra híbrida, parece que ainda não conseguimos levar a sério a questão da higiene mental.
6. Vou comentar Invasores de Corpos (livro de Jack Finney; vi a bela versão cinematográfica de Abel Ferrara, de 1993). Lá, um processo de captura mental é dramatizado. O fantasma do comunismo ronda. Como fantasma, envolve algo de não-visível. Como processo de captura mental, teria como efeito a mudança do comportamento daqueles que tiveram suas almas transformadas. Casulos alienígenas se comunicam via finos tentáculos com os corpos daqueles que estão dormindo, gestando assim um duplo, um doppelganger, enquanto o original morre e então é substituído. Como duplo, mas agora uma versão pseudocomunista da pessoa original, esta perde sua individualidade e é dominada por um impulso de propagação. É um comunismo esvaziado, vago, de características negativas: uma força de propagação que tem como objetivo se propagar, e que não é a boa ideologia neo-liberal individualista.
7. É interessante olhar dessa forma para o filme porque assim podemos desdobrar dele a relação entre a ideia de polarização e de pseudocamuflagem. Tanto no que podemos extrair do filme, quanto no que extraímos do discurso de nosso vice presidente Mourão quanto ao assunto, polarização não é propriamente o estado social em que existem duas visões de mundo contrastantes e que teimam ser inconciliáveis, com elementos incomensuráveis etc. Polarização é o nome que devemos dar ao movimento discursivo de alguns agentes do espectro político. Esses agentes procuram afirmar que o campo político está dividido em dois, o lado a qual eles pertencem, e o outro lado. E que seu lado radicalizou em resposta ao outro. E que seria melhor conciliar, mas como o outro lado é intransigente e se recusa à conversar, ele deve ser culpado pelo estado atual lamentável. De modo que, o lado desse agente, composto por radicais intransigentes, possa criar uma entidade vaga, “o outro”, no qual projetar o seu monstruoso, de modo a dar-lhe salvo conduto para praticar o seu monstruoso, dito contra-monstruoso.
8. A pseudocamuflagem, por sua vez, acontece quando cidadões perfeitamente normais são colocados sob suspeita: sua existência normal é uma pseudocamuflagem. Ela camufla algo, mas esse algo não existe. Por exemplo, “radicalismo comunista”. Porque não importa que “radicalismo comunista” no fundo não signifique muito. Dentro da esfera da polarização, ele é o que define o outro. E o outro, agora assim vagamente definido, é o que permite a monstruosidade dos que justamente não são o outro. Porque, diferentemente de uma obra de horror, onde medos inculcados pela técnica da polarização são tornados efetivos, concretos e operantes, na nossa vida cotidiana, não é necessária uma adequação hipersticional (que o discurso realmente torne-se realidade), mas apenas aproximações que justifiquem radicalizações.
9. No livro Cyclonopedia (2008), Reza Negarestani, citando um suposto artigo – “Paz na esteira da dupla-traição”, de H. Parsani, trata do filme A Coisa, de John Carpenter (1982). Ele o relaciona com a doutrina islâmica, particularmente do ramo xiita, da Taqiyya. Nesta estratégia defensiva, deve-se esconder sua verdadeira crença e atividades de modo a evitar qualquer perigo. Na versão militar moderna, entretanto, os agentes devem tomar as crenças e atividades do outro e agir como se fossem suas, integrando-se totalmente à sociedade inimiga. Agindo como infiel, esse ativista radical deve, por um lado, tornar-se indistinguível de um bom cidadão. Por outro, deve tornar todos os bons cidadãos, ou ao menos uma parcela destes, possivelmente indistinguíveis de si próprio. E isso de modo ao estado invocar um combate ao terror que suspeite de seus próprios cidadãos, que tenha pesadelos de paranóia quanto a jihad. A sociedade inimiga seria então tomada por uma “guerra branca”, por uma névoa densa e impenetrável da cor da paz. Os cidadões devem adquirir pseudocamuflagem.
10. Em A Coisa, há de fato uma analogia bastante interessante. O monstro age em uma mistura incômoda de devorar e infectar, de modo que seus alvos se tornem tanto comida como hospedeiros. A entidade manifesta-se como uma inteligência alienígena apavorante e mortífera apenas quando esta quer se alastrar, propagar. Nas outras ocasiões ela imita perfeitamente o seu hospedeiro, replicando não apenas a aparência, mas o comportamento, como que substituindo, de dentro, todas suas células por células até certo modo idênticas, mas com um potencial de contágio monstruoso latente. Assim, diferentemente da comunidade de duplos alienígeno-comunistas, de Invasores de Corpos, a ausência de personalidade (personalidade ali confundida com individualidade neoliberal estereotípica), não será um indicativo de perigo. A convivência social não será alarmante. Exceto se a Coisa for se propagar.
11. Ao longo do filme, entretanto, um outro meio de confirmação da presença da Coisa é desenvolvido, um que não envolve morrer ao presenciar a propagação. Como é comum em narrativas de horror, trata-se de um teste de certa cientificidade; nesse caso, sanguíneo. Imaginando uma possível sequência cinematográfica em que, tal como nos filmes de zumbi, a Coisa finalmente tomasse conta da Terra, duplicando todas as criaturas superiores que a habitam, o que aconteceria? Um mundo possivelmente igual ao nosso? A questão é como essa perspectiva deveria ser assustadora, pois implicando uma quantidade enorme de mortes. De modo que é preciso fazer testes no maior número de suspeitos possível e dar um jeito de isolar e derrotar os monstros.
12. Assim, não seria aceitável recusar os testes, invalidá-los, não levá-los a sério, e não fazer assim um plano articulado de combate. Isso porque indivíduos assintomáticos podem sim serem vetores de contaminação e assim, mortes. Os assintomáticos que insistem em uma individualidade acima do coletivo, voltada à egóica injunção ao prazer, ao precisar viver uma vida normal de prazeres hedonistas e sociabilidade expansiva, são vetores hipercamuflados. E eles nos fazem suspeitar de todos os brasileiros, de projetor ainda outras pseudocamuflagens neles: “no fundo, todos são uns individualistas irresponsáveis, os outros”. E se uma parte da população deu a luz uma face monstruosa ao apoiar a junta militaresca que nos governa, a sindemia atual tem como fortes componentes a pseudo e a hiper camuflagem.
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