Meu avô Azauri era tão ateu quanto Leslie, a mãe da família survivalista de Capitão Fantástico, e adorava fazer piadas, em paralelo, sobre “aquela gente que acredita em Deus” (éramos pequenos; eu sempre me perguntava de onde vinha o sorriso dele quando dessas inserções – estava a gaiatar). Não a toa, apesar do urbanismo entusiasmado dele, em contraste com a vontade de isolamento de Ben (o Fantastic), o filme de Matt Ross (2016) conseguiu me capturar, na ambiguidade própria da figura do macho esclarecido.
Quando Azauri morreu, ficamos sem saber o que fazer com seu revólver, mas principalmente, com suas cinzas (lembro de uma padaria da Doutor Arnaldo e do tempo de espera, quando do arranjo com a funerária). Elas ficaram um bom tempo abrigadas dentro de uma bolsa bege de tecido grosso e craquelado, provavelmente couro, com um zíper de fecho danificado, como que dizendo não me abra.
Quando vivo, nos servia um café da manhã suntuoso, com milk shakes feitos de picolés (eram como white russians for kids) – lembro especialmente do de uva. Me levou inúmeras vezes ao shopping Eldorado e fazíamos questão de subir os andares usando o elevador panorâmico. Decerto, não seria tão improvável que tivesse nos pedido para jogar seus restos incinerados em uma das privadas do mesmo, em uma espécie de cerimônia da não-cerimônia. Mas talvez isso fosse glorificação demais; fosse transformar uma piada em assunto principal.
Então, quando sua casa foi desfeita, movemos as cinzas para nossa morada, em um armário e depois outro, passando por posições intermediárias, esquecidas um pouco ali e acolá, lembradas quando alguém perguntava: “mas e isso aí?” “Ah sim, precisamos guardar essa bolsa em outro lugar”. E então, em uma praia da Ilha Grande, pareceu ao meu pai suficientemente materialista e simples, despeja-las ao mar, entre pedras. Na minha imaginação estava ventando e parte do conteúdo teria se incrustado nas rochas. Mas eu já havia visto o Grande Lebowski então as coisas podem ter-se misturado na lembrança (o que é um dado importante: porque foi uma cena banal, ordinária, sem impacto; um ritual realmente mínimo, que se apaga na sua realização, que dissolve sua própria presença). Então, sem Vietnã, papo furado, ou cinzas caídas na cara.
He was a man who loved the outdoors.
(Walter, em The Big Lebowski, 1998, dir. Joel & Ethan Coen)