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[29] “Tradicionalmente se enumeram oito traços fundamentais” (…)
- o traço horizontal;
- o traço vertical;
- o “ponto” (segmento muito curto);
- o gancho;
- as oblíquas:
- traço levantado, da esquerda à direita;
- traço baixado, da direita à esquerda;
- traço baixado curto, da direita à esquerda;
- traço apoiado, da esquerda à direita;
[30] um traço horizontal é sempre traçado da esquerda para a direita; um traço vertical, de cima para baixo. (…)
O número de traços de um caractere pode ser facilmente contado, e isso é utilizado na maior parte das classificações: muitos dicionários, listas, índices etc., ordenam os caracteres por número de traços em ordem crescente. Por exemplo, quando se quer fazer uma lista de pessoas sem ordem de precedência, a ordenação baseia-se no número de traços de seu nome de família.
[31 princípios gerais dos traçados de um caractere]
- começa-se pela esqurda do caractere e continua-se em direação à direita – vai-se de cima para baixo;
- os traços horizontais são feitos antes dos verticais – exceto no caso em que isso obrigaria a infringir a regra seguinte;
- quando a extremidade de um traço termina num outro, sempre se traça este último primeiro;
- quando o conjunto ou uma parte do caractere está compreendido num espaço fechado, este só deve se fechar quando todos os traços interiores foram traçados.
Convém notar que, para os caracteres compostos de vários elementos, traçam-se todos os traços de um primeiro elemento antes de começar o segundo, com a ordem da escrita dos elementos obedecendo às mesmas regras que a ordem dos traços no interior dos caracteres: escreve-se o elemento de cima antes do elemento de baixo, o elemento mais à esquerda antes dos que estão mais à direita etc.
[33 tipos de caracteres] Todos os caracteres, seja qual for o seu grau de complexidade, devem ocupar um espaço igual, um quadrado imaginário. Uns são apenas um arranjo de traços no qual não se pode reconhecer nenhum subconjunto com uma individualidade. Outros caracteres, ditos complexos, são compostos de dois ou vários grupos de traços que são ou o traçado de caracteres simples que pode ser utilizado separadamente com um sentido próprio, ou arranjos de traços que não têm existência autônoma e são utilizados apenas como partes de caracteres complexos.
[36 Formas complexas que contém um elemento fonético] “formados de um elemento tomado foneticamente e de um outro que indica de forma esquemática a ordem de ideias à qual a palavra se relaciona”. (…) O primeiro elemento é a “fonética”, e o segundo é a “chave”.
[39] Porém, considerando a situação atual, é certo que as “fonéticas” só facilitam a leitura em certa medida. Estima-se que a pronúncia dos caracteres atuais ´, para 25% dos caracteres, idêntica à de sua fonética, que em 17% há identidade exceto no tom e que 24% só dão o elemento final da sílaba, não importando o resto.
Assim, a coerência do sistema se viu alterada no curso de sua longa existência. Uma situação análoga é observada em outro plano, como a ortografia do português, por exemplo, que conserva o vestígio de múltiplas pronúncias sucessivas. Há uma defasagem entre os estados de língua que a escrita reflete e o uso vivo.
Uma outra dificuldade da escrita chinesa decorre da ausência de especialização dos elementos: um caractere simples pode servir ora de fonética ora de chave.
[42 empréstimos-rébus] Por exemplo: havia na época arcaica um caractere que designaa uma espécie de cereal, cujo nome se pronunciava, segundo a reconstrução de B. Kalgren, lag; não existia caractere para o verbo “vir”, que se pronunciava do mesmo modo. Esse verbo foi então escrito com o caractere do cereal, supondo-se que a diferença de contexto evitaria confusões. Na época atual, esse caractere, que não é mais empregado para designar um cereal, serve exclusivamente para escrever “vir”, que agora se pronuncia lai. O fato de esses empréstimos serem feitos sobre bases fonéticas prova, se houvesse necessidade de prova, que uma relação direta existiu, tão longe quanto se possa remontar no tempo, entre as formas escritas e orais do chinês.
[43] É raro que se utilize por muito tempo o mesmo caractere para dois homófonos. Na maioria dos casos, introduz-se um elemento novo para distingui-los: a chave. Por exemplo, existiam duas palavras de mesma pronúncia, uma significando “alto” e a outra “seco, murcho”. A primeira era escrita por meio de um caractere que representava uma torre. Tomou-se de empréstimo o traçado para escrever o segundo, mas, a fim de evitar confusões, acrescentou-se a chave da madeira. Esse exemplo mostra bem que as chaves não são classificações lógicas; geralmente são simples associações de ideias que justificam sua escolha.
[51-2 Caracteres] 1. Distinções que não existem na forma oral – O pronome pessoal da terceira pessoa se diz ta, não importa o nome que ele substitui: ta pode designar um homem, uma mulher, um animal, uma noção ou um objeto. Na gramática chinesa não há nem masculino, nem feminino, nem neutro. Contudo, nas primeiras décadas do século XX, os linguistas chineses julgaram cômoda a oposição que se observa nas línguas europeias quanto à terceira pessoa (ele/ela, il/elle, he/she etc.). Na forma oral, a situação geralmente permite saber de quem ou de que se fala; nas mensagens escritas, é muitas vezes útil marcar explicitamente a distinção entre homem e mulher ou mesmo entre humano e não humano. De todo modo, os gramáticos têm pouca influência sobre o uso falado, enquanto a forma escrita está submetida a regras. Portanto, é agora recomendado utilizar três grafias distintas para o pronome ta: a primeira (com a chave “homem”) serve para os homens e em todos os casos mistos e indeterminados;
他 (masculino) 她 (feminino) 它 (neutro)
a segunda (com a chave “mulher”) serve em princípio apenas para as mulheres; a terceira, que serve para os animais, as coisas e as noções, tem um emprego mais restrito, porque em geral se evita a forma pronominal nesses casos. Tende-se assim a criar, na forma escrita dos pronomes, distinções de gênero que não existem na forma oral. Esse uso é comumente aceito a despeito do artifício de suas origens.
[55] a) Transcrições búdicas – A preocupação em conservar a pronúncia original exata dos termos de conteúdo religioso obrigou os tradutores a transcrevê-los respeitando as sílabas da palavra sânscrita, procurando encontrar caracteres cuja pronúncia se assemelhasse tanto quanto possível à das sílabas sânscritas. Os intérpretes budistas não fizeram esse trabalho de uma maneira definitiva, escolhendo para cada som da língua sânscrita um caractere chinês representativo; ao contrário, há uma grande variedade de formas homófonas. “Não havendo como se sujeitar a uma lei comum, cada um pode empregar à vontade um signo diferente para representar o mesmo som indiano”, escrevia Stanislas Julien, que recenseou “mais de 1200 caracteres diferentes para pronunciar as 42 letras do alfabeto indiano”.
[65] É claro que os chineses não se contentam em tirar partido das duas direções da horizontal: são imaginados textos que têm leitura multidimensional (“poemas-blocos”), ou que podem ser lidos segundo certos percursos, cujo próprio traçado teria um valor simbólico (“poemas-labirintos”).
Quando alguém apresenta seu nome, confusões são possíveis. Por isso, surgiu o hábito de dar para cada nome de família uma descrição convencional, enumerando os elementos gráficos do caractere correspondente a esse nome. Por exemplo, uma pessoa chamada Li se apresentará assim: wo xing Li, mu, zi Li “eu me chamo Li, Li” (que se escreve) “madeira”, “filho”. De fato o caractere Li é escrito com o traçado de mu “madeira” e de zi “filho”.
[80] O estilo caoshu, o mais livre, apresenta duas características:
- Traços dos elementos de caracteres são eliminados; salvo para os caracteres que contenham um pequeno número de traços, quase todos os elementos são representados por formas abreviadas. Trata-se, em suma, de uma “escrita da escrita”. Criada a partir de uma necessidade de abreviação, ela logo se tornou uma arte abstrata, tal como um sistema de signos: o caoshu, inteligível apenas aos iniciados, é inutilizável para a comunicação cotidiana.
- Os traços perdem sua individualidade e são ligados: passa-se a escrever todo um caractere com um único gesto, depois a ligar os caracteres entre si e mesmo a escrever toda uma coluna com uma única aplicação do pincel.
[91 nos caracteres] As qualidades buscadas são:
- para os traços, o máximo de diversidade possível no quadro estrito imposto pela estrutura do caractere (é assim que eles são “vivos” e escapam à inércia das produções mecânicas);
- para os caracteres, o equilíbrio;
- para o conjunto de um texto, uma organização do espaço onde a distribuição dos brancos tem tanta importância quanto o ritmo do grafismo.
[102] A leitura de uma única escrita chinesa num espaço onde coexistem múltiplos dialetos e a difusão dessa escrita fora da China puderam dar a ilusão de que ela registrava várias línguas. Isso não é verdade.
I. Dialetos chineses – Todos os chineses, quer habitem a Manchúria, Pequim, Cantão ou Singapura, falam uma variedade ou outra de “chinês”, isto é, seu falar tem uma origem comum e caracteriza-se pelo fato de todas as sílabas terem um sentido. Contudo, em muitos casos, não há comunicação oral possível entre esses homens se eles se limitarem à sua fala cotidiana, ao seu “dialeto”. A unidade linguística do mundo chinês só é efetiva, atualmente, no nível da escrita.
[105] Japonês – Quando entraram em contato com a civilização chinesa, primeiro por intermédio dos coreanos (por volta do século IV d.C.), depois diretamente, os japoneses não tinham uma escrita própria. Eles importaram as grafias chinesas, assim como uma série de termos e textos chineses. A maneira como funciona atualmente a escrita no Japão se explica pela combinação da língua japonesa com os diversos tipos de empréstimos. (…)
A) Os caracteres chineses em japonês – Os caracteres chineses servem primeiramente para transcrever os termos tomados de empréstimo ao chinês. Para essa parte da língua em que os japoneses importaram ao mesmo tempo a forma oral e a forma escrita, a forma oral é derivada da pronúncia chinesa na época do empréstimo: é o que se chama de “sino-japonês”. Como em chinês, a cada caractere corresponde uma sílaba.
[106] Por outro lado, pode-se escrever uma palavra propriamente japonesa com os caracteres chineses de mesmo sentido. Nesse caso, a forma oral continua sendo japonesa, e somente a grafia é importada. No entanto, em japonês, o caractere não corresponde necessariamente a uma única sílaba. Por exemplo, a palavra japonesa hito “homem” é escrita com um caractere que significa igualmente “homem” em chinês e que se lê ren nessa língua. Do mesmo modo, a palavra japonesa yama “montanha” é escrita com um caractere único, que se lê san em sino-japonês e shan em chinês.
Deve-se assinalar, enfim, que a simplificação dos caracteres, que se operou independentemente nos dois países, resultou, para um certo número de caracteres usuais, em formas diferentes.
B) Os “kana” – O silabário kana, que contém 51 signos, possui duas variantes gráficas cujos empregos são complementares. Os hiragana são derivados de grafias cursivas de caracteres chineses. Servem para transcrever foneticamente as palavras japonesas em todos os casos em que não se utilizam os próprios caracteres chineses e, de um modo geral, em tudo o que, na língua japonesa, diferencia-se demais do chinês para ser expresso pelos caracteres (desinências, partículas etc.). Os katakana são derivados de grafias de elementos de caracteres chineses e transcrevem palavras de origem estrangeira diferentes do chinês (inglesas, francesas etc.), ou então servem para precisar as pronúncias de caracteres chineses pouco frequentes. Os hiragana têm uma aparência ondulosa e flexível, enquanto os katakana são rígidos e angulosos.
C) Empregos respectivos dessas escritas – O kana (mais precisamente o hiragana) foi durante muito tempo chamado a “escrita das mulheres”. A sua educação era sumária: elas aprendiam apenas os kana, o que lhes dava [107] acesso a romances e outros textos literários que, na maioria das vzes, eram trnascritos assim, mas lhe impedia a leitura de todos os textos ditos “sérios”, filosóficos, históricos, científicos, técnicos etc., que permaneciam em caracteres chineses. Essa divisão entre a literatura “vulgar” e outros tipos de escrita persistiu de forma mais ou menos nítida.
D) Evolução recente e tendências – Até Segunda Guerra Mundial, qualquer caractere chinês podia ser empregado em japonês, o que acontecia de fato com um grande número deles. Em 1927, os grandes jornais de Tóquio utilizavam entre 7500 e 8000 caracteres, e estimava-se que um leitor culto devia conhecer cerca de 5000. Isso implicava um esforço bem maior que o conhecimento do mesmo número de caracteres em chinês, pois cada caractere em japonês tem normalmente, além de uma ou várias pronúncias para seus empregos nas palavras de origem chinesa, uma ou várias pronúncias para as palavras japonesas que ele transcreve conforme o sentido delas. Os kana eram empregados para as terminações gramaticais e também ao lado de caracteres para precisar sua leitura em muitos casos ambíguos.
Depois da guerra, houve uma campanha, estimulada pelas autoridades americanas, em favor da romanização pura e simples do japonês, isto é, de sua transcrição alfabética em caracteres latinos. Essa reforma foi rejeitada. Por outro lado, houve uma forte pressão, aparentemente com melhores resultados, no sentido de limitar o uso dos caracteres chineses em japonês, ou mesmo de suprimi-los totalmente para reduzir todo o sistema gráfico a silabário em kana.
O governo japonês publicou em 1946 uma lista de 1850 caracteres que podiam ser utilizados “temporariamente”, ate que fosse feita uma reforma mais radical. Essa lista, que supostamente constituía um máximo pro-[108]visório, tornou-se de fato a norma mínima – ensinada nas escolas de nível fundamental e médio. Os jornais e as revistas reduziram sua tipografia em caracteres chineses a essas 1850 formas. Contudo, os escritos técnicos e científicos não levam essa lista muito em conta e utilizam um grande número de caracteres diferentes.
E) Acesso aos textos chineses – Como os caracteres chineses constituíam uma parte intrínseca da escrita japonesa, seu uso difundiu-se bastante no Japão para que os japoneses pudessem identificar o tema de um texto escrito em chinês e para que os chineses pudessem compreender do que trata um texto japonês em que é grande a proporção de caracteres chineses – o que acontece com os livros científicos. Todavia, em nenhum dos dois sentidos, se não se aprendeu a língua do outro, pode-se dizer que há uma verdadeira leitura.
[118] Perspectivas – A alfabetização do chinês não esbarra em obstáculos propriamente técnicos – o pinyin é uma excelente transcrição -, mas no fato de sua necessidade não ser sentida. Nos anos 50, os caracteres chineses pareciam um obstáculo ao desenvolvimento dos povos que os utilizavam e previa-se seu desaparecimento a mais ou menos longo prazo. Foi constatado desde então que seu uso não é um obstáculo nem à elevação do nível de educação da população, nem ao desenvolvimento econômico.
No começo do século XXI, a questão da manutenção ou da supressão dos caracteres não mais se coloca.
{Viviane Alleton, Escrita Chinesa, trad. Paulo Neves,LPM Pocket: 2012}