o ressentimento contra o artístico

esses dias perguntei a uma colega se as mesmas pessoas que atribuíam um dom, uma habilidade inata para o fazer artístico, eram as mesmas que pechinchavam e pagavam mal. minha intuição, nesse caso correta, era de que sim. atribuir um dom ajuda a retirar a prática alvo da esfera do “trabalho propriamente dito”. assim, afasta-se a atividade que envolve o artístico como sendo de outro tipo. é uma atividade significativa, em que o fazer bem feito importa muito; ela promove a satisfação pelo resultado de seu esforço e possibilita o próprio fazedor a ter prazer enquanto a pratica.

por essas qualidades seria estranho que um tal tipo de atividade fosse possível a todos, daí que devesse ser um dom. e seria também estranho que fosse bem remunerada, daí a necessidade de pagar mal. pois imaginem se um trabalho pudesse ser significativo e prazeiroso e ainda assim ser um trabalho propriamente dito. é preciso que no artístico só alguns indivíduos sejam qualificados, e de modo que todos os que os admiram não possam pensar-se em mesma posição. e também que tenham remuneração baixa, dado que já tem o privilégio de fazer algo que possui sentido e provoca prazer ou ainda contribui para o bem.

de fato, a definição do trabalho propriamente dito mais atual não envolve de modo algum a ideia de dom, mas a fatalidade de ter de aprender algo tortuosamente, em partes. diferentemente do artístico, entretanto, a utilidade desse algo é muitas vezes restrita, sua significação não atraente, e a experiência de seus resultados pouco benéfica. é comum que a recompensa seja quase que exclusivamente o retorno financeiro, o qual justificaria o sentimento de inutilidade ou falta de propósito, ou lavaria a alma daqueles que estão preocupados com estar promovendo o mal e a má vida.

e quando não há uma ponta de admiração, que levanta a postulação da ideia de dom, a inveja ainda investe em outras formas, como a ideia de vagabundagem e mamata: não estar perdendo a vida em um trabalho maçante e pouco relevante – vagabundagem. conseguir dinheiro para realizar trabalhos em que a motivação é pessoal, interna – mamata. e assim a má consciência dos que têm uma vida ruim deve sempre combater, admirando ou não, a boa vida, tornando a boa vida pobre, já que espiritualmente esta não é miserável.

david graeber, no seu último livro, tratou em um belo capítulo de ressentimentos desse tipo, mostrando que são muito mais generalizados do que pareceria a princípio. e como materializam-se em cargos de gerência, administração intermediária, formulários e intermediações burocráticas. resenhei o mesmo aqui. é interessante pensar como os professores, além dos artistas, são alvo da má consciência. não por vias do dom, mas por serem altruístas num mundo em que o retorno financeiro do assalariado constrói-se contra o altruísmo. nessa lógica, os professores do ensino fundamental devem ser relegados a um sofrimento franciscano. provocam a raiva daqueles que nos lembram que trabalhar pode ser motivado por ajudar os outros, ao máximo de nossas possibilidades.


postado em 14 de fevereiro de 2020, categoria comentários : , , , , ,

manhattan

quando dylan farrow pergunta qual o filme de woody allen é nosso favorito, ela está certamente querendo moralizar, causar má consciência. se nos for permitido não sentir compaixão e distanciarmo-nos um pouco o que então resta, na pergunta? reassistir aos filmes.


postado em 7 de fevereiro de 2014, categoria comentários : , , , , , ,

objetificação, biografias não-autorizadas

1. ninguém precisa estudar filosofia analítica pra perceber o contrassenso que é perguntar se uma biografia não-autorizada precisa de autorização.

(me parece ser um daqueles casos em que nem a idiotia do capital prevalece, mas tão somente a idiotia)

2. uma vez que se utiliza objetificação como má-objetificação fica fácil demais descrever e definir objetificação como .

(seria preciso pensar o objeto, os devires, a objetificação e seu papel. inclusive na sexualidade. talvez com isso possamos usar o termo de uma forma menos enviesada. quanto à má-objetificação do homem pela mulher, é apenas uma nova partilha de poderes – maior igualdade entre gêneros significa também maior igualdade na produção de má-consciência e de opressão)


postado em 1 de dezembro de 2013, categoria comentários : , , , , , ,