é sabido que o valor de uma coisa não é a coisa. que o valor de uma coisa é imaterial. e que uma arte imaterial chega, assim como os avanços financeiros mais derivativos, próximo a essa essência, onde o valor se converte em quantidade=dinheiro, evitando ao máximo a incorporação ou corporificação em algo. seja uma escultura imaterial (mas que deve possuir um contrato) ou uma expectativa de venda bem sucedida de galões de gasolina (mas que deve possuir um contrato), sentimo-nos próximos da abstração máxima e como no ditado, muitas vezes olhamos pro dedo ao invés de olhar para a lua.
mas há quem diga que, se o dedo é bem determinado, isto é, o absurdo de um artista fazer uma obra imaterial que custa milhões (ou apenas algumas centenas), ou um negociador gastar mais em garantias de negócios do que em negócios (movimentando no total mais que os negócios propriamente ditos), a lua nos evade. talvez não. se há contratos há ainda um lastro material, mas mesmo que não houvesse, a base que fornece a possibilidade de valorar ainda é a confiança. que ela se desincorpore também na arte, ao aproximar do abstrato, do imaterial, mergulha o artístico na pura realidade. expulsa de seu mundo imaginário, isto é, preso ao sensível, a arte torna-se parte do mundo, nosso mundo composto por coisas absolutamente imateriais como leis, dinheiro, acordos, significados. obviamente que a confiança deve estar vinculada a formas de vida, bastante materiais. mas há um movimento de fuga, o momento do realismo (capitalista).
(eu ainda acreditaria que o absurdo de tudo isso é a ideia de que concentrar renda é aceitável)
postado em 3 de junho de 2021, categoria comentários : arte, derivativos, financeirização
esses dias perguntei a uma colega se as mesmas pessoas que atribuíam um dom, uma habilidade inata para o fazer artístico, eram as mesmas que pechinchavam e pagavam mal. minha intuição, nesse caso correta, era de que sim. atribuir um dom ajuda a retirar a prática alvo da esfera do “trabalho propriamente dito”. assim, afasta-se a atividade que envolve o artístico como sendo de outro tipo. é uma atividade significativa, em que o fazer bem feito importa muito; ela promove a satisfação pelo resultado de seu esforço e possibilita o próprio fazedor a ter prazer enquanto a pratica.
por essas qualidades seria estranho que um tal tipo de atividade fosse possível a todos, daí que devesse ser um dom. e seria também estranho que fosse bem remunerada, daí a necessidade de pagar mal. pois imaginem se um trabalho pudesse ser significativo e prazeiroso e ainda assim ser um trabalho propriamente dito. é preciso que no artístico só alguns indivíduos sejam qualificados, e de modo que todos os que os admiram não possam pensar-se em mesma posição. e também que tenham remuneração baixa, dado que já tem o privilégio de fazer algo que possui sentido e provoca prazer ou ainda contribui para o bem.
de fato, a definição do trabalho propriamente dito mais atual não envolve de modo algum a ideia de dom, mas a fatalidade de ter de aprender algo tortuosamente, em partes. diferentemente do artístico, entretanto, a utilidade desse algo é muitas vezes restrita, sua significação não atraente, e a experiência de seus resultados pouco benéfica. é comum que a recompensa seja quase que exclusivamente o retorno financeiro, o qual justificaria o sentimento de inutilidade ou falta de propósito, ou lavaria a alma daqueles que estão preocupados com estar promovendo o mal e a má vida.
e quando não há uma ponta de admiração, que levanta a postulação da ideia de dom, a inveja ainda investe em outras formas, como a ideia de vagabundagem e mamata: não estar perdendo a vida em um trabalho maçante e pouco relevante – vagabundagem. conseguir dinheiro para realizar trabalhos em que a motivação é pessoal, interna – mamata. e assim a má consciência dos que têm uma vida ruim deve sempre combater, admirando ou não, a boa vida, tornando a boa vida pobre, já que espiritualmente esta não é miserável.
david graeber, no seu último livro, tratou em um belo capítulo de ressentimentos desse tipo, mostrando que são muito mais generalizados do que pareceria a princípio. e como materializam-se em cargos de gerência, administração intermediária, formulários e intermediações burocráticas. resenhei o mesmo aqui. é interessante pensar como os professores, além dos artistas, são alvo da má consciência. não por vias do dom, mas por serem altruístas num mundo em que o retorno financeiro do assalariado constrói-se contra o altruísmo. nessa lógica, os professores do ensino fundamental devem ser relegados a um sofrimento franciscano. provocam a raiva daqueles que nos lembram que trabalhar pode ser motivado por ajudar os outros, ao máximo de nossas possibilidades.
postado em 14 de fevereiro de 2020, categoria comentários : arte, david graeber, dom, má-consciência, ressentimento, trabalho
diz adorno que se as obras de arte fossem intuitivas, estas seriam, segundo wagner, efeito sem causa. e portanto, ideológicas no mais alto grau.
postado em 29 de outubro de 2019, categoria aforismos : arte, ideologia, intuição, obra de arte, richard wagner, theodor wiesengrund adorno
se a arte é essencialmente inefável, então não importa se falamos muito ou pouco dela, se teorizamos ou não, ela permanece como algo de fugidio, indeterminável.
se não é essencialmente inefável, mas apenas ocasionalmente, então seria bom criticarmos e refletirmos sobre as obras, a ver quais ainda permanecem misteriosas após escrutínio.
se não são nunca inefáveis, seria melhor combater as críticas como redutivas e as teorias como paralisadoras, afim de que, do vácuo das palavras surja um quase-nada, um não dizer contido, que se prolifera em nebulosidade, a ser tomada com alívio.
mas e a experiência, não pode ela, sob grades muito determinantes e referenciadas, acabar com a inefabilidade? (como evitar que esse tipo de argumento não recaia no terceiro caso?).
e vale almejar racionalmente o inefável? no caso heideggeriano, há um circundar, como que preparando as condições necessárias para sua erupção. ele, tão frágil, facilmente esmagado, soterrado, esquecido. (mas estamos então no segundo caso e há arte na qual nada floresce, ou no terceiro, mistificando). em jankélévitch trata-se de jogar a escada fora. (mas daí seria melhor estar no primeiro caso).
postado em 26 de setembro de 2019, categoria aforismos : arte, filosofia, inefável, martin heidegger, vladimir jankélévitch
assim como boa parte dos filósofos é contra a opinião/doxa, alguma parte dos artistas é contra a (auto) expressão. mas isso porque a filosofia se dá no embate com a opinião, tanto quanto a arte contra a expressão.
postado em 18 de agosto de 2018, categoria aforismos : arte, auto-expressão, doxa, expressão, filosofia, opinião
parece que uma vez identificado que se está “em tempos de crise”, há uma corrida institucional para cortar certos tipos de financiamentos. em geral, esses cortes não parecem ser planejados de acordo com uma racionalidade econômica efetiva ou de acordo com um plano social coerente. em uma batalha por verbas, é muitas vezes verdade que o elo mais fraco perde, e que aqueles que perdem tendem cada vez a perder mais. mas me ocorreu que os cortes nas áreas artísticas e de cultura, áreas cujos orçamentos já são reduzidos e que em instâncias não impactam de modo relevante na soma total das contas, possa ter também outro tipo de significação. pois não terá esse tipo de corte, que se espalha de modo quase-epidêmico, um valor simbólico e uma efetividade especial no âmbito do enxugamento dos orçamentos?
penso que os gestores podem ter percebido que, ao cortar no financiamento artístico, cortam muito pouco em termos de montante, mas com isso já geram comoções cujo tamanho e visibilidade são suficientes para que a ação tenha valido a pena – com um mínimo de alteração efetiva, provocam um máximo de sensação de ação. como se os protestos e as acusações que seguem pudessem servir de bode expiatório para o fato de que não se corta de maneira racional nem segundo uma lógica de bem estar social, mas muito menos de uma maneira que lide com os problemas orçamentários reais. e a dupla valoração da arte a isso contribui da seguinte forma: seu valor humanista é muito grande – ela motiva defesas acalouradas; entretanto seu valor mercadológico é muito pequeno, de modo que eventos e iniciativas inteiras podem vir a extinguir-se em meio a falta de continuidade de aporte. seu valor total é sempre incerto, a oscilar entre um alto valor ideal, entre o estético e o ético, e um valor real baixo, de uma vontade de investimento baixa e efetividade duvidosa.
postado em 2 de novembro de 2017, categoria comentários : arte, cortes, crise, economia, humanismo, orçamento, valor
1. a arte reduz/fixa
2. a ciência desloca/elimina
3. a filosofia circunscreve/delimita
postado em 1 de outubro de 2017, categoria aforismos, prosa / poesia : arte, ciência, definição, filosofia, poesia, sentido
1. um poema
barrar o devir
expiar a experiência
domar a loucura
arte contra a vida
2. são notórias as reclamações de bataille contra o (segundo) surrealismo, ou o “surrealismo estético”. não sei se ele teria previsto o quão rápido seria a apropriação ou o paralelismo publicitário nesta direção, produzindo um misto de arte e vida contra a vida. mas ele estava suficientemente consternado com um tipo de arte expressiva, a ponto de escrever:
se um homem começa a seguir um impulso violento, o fato de exprimi-lo significa que renuncia a segui-lo ao menos durante o tempo de expressão. A expressão exige que se substitua a paixão pelo signo exterior que a figura. Aquele que se exprime deve, portanto, passar da esfera ardente das paixões à esfera relativamente fria e sonolenta dos signos. Em presença da coisa exprimida, é preciso, portanto, sempre se perguntar se aquele que a exprime não prepara para si mesmo um profundo sono.
{georges bataille, a loucura de nietzsche, trad. fernando scheibe, editora cultura e barbárie, achephale vol. 5, p.9}
em relação à impostura de “um pesadelo que justifica roncos”, nada mais frouxo e distanciado da loucura, de tornar-se vítima de suas próprias leis. eis a potência da arte expressiva: normalizar.
postado em 24 de setembro de 2017, categoria aforismos, prosa / poesia : arte, expressão, georges bataille, loucura, surrealismo, vida
muitas pessoas adotam posições amenas em que, providencialmente, se omitem enquanto participantes. a observação mais perspicaz que conheço sobre isso é a anedota do congestionamento.
um sujeito, preso em um congestionamento, liga para seu colega de trabalho, dizendo: “vou chegar atrasado. é que estou aqui ajudando a congestionar a via com meu carro.”
no meio artístico é comum que se fale e faça muita arte contra a cultura, querendo dizer: contra a cultura dos outros, não a minha. de modo que o artista nunca fica perplexo em relação ao que fez, ou angustiado; seus amigos sempre podem ir aos seus shows e exposições mantendo um sorriso leve no rosto e curtir. há quem fale de um entretenimento “superior”. ninguém nunca vai comentar que você “forçou a amizade”.
postado em 21 de abril de 2017, categoria aforismos, comentários : amizade, arte, congestionamento, cultura, outrem, participação
reza negarestani escreveu um ensaio para uma exposição de jean-luc molène, torture concrete (2014, sequence press). uma bela resenha sobre pode ser lida aqui, com as fotos que faltam terrivelmente no livreto, ao final. (traduzo trechos interessantes sobre o papel da abstração na arte)
A abstração é da ordem da crueldade formal do pensamento. Em sua forma mais trivial e inocente ela envolve pura mutilação: amputar, da matéria sensível, a forma. Em suas instâncias mais complexas – isto é, mais autênticas -, é a organização concomitante da matéria pela força do pensamento, e a reorientação do pensamento por forças materiais. É a mútua penetração e desestabilização do pensamento e da matéria de acordo com os seus respectivos mecanismos de regulação e controle. {5}
O que sustenta e impulsiona o sistema de abstração é a ambição do pensamento de liberar a si da tirania do aqui e agora, a qual é representada como o apego do pensamento a um substrato material particular, uma intuição específica ou um limite colocado pela imaginação. {6}
(…) a tarefa da arte é redescoberta não em sua ostensiva autonomia, mas em seu poder singular de rearranjo e desestabilização das relações de configuração entre os parâmetros do pensamento, os parâmetros da imaginação e as restrições materiais que estruturam e parametrizam o edifício cognitivo. {7}
postado em 18 de outubro de 2016, categoria excertos : abstração, arte, jean-luc molène, reza negarestani, torture concrete