como muitos outros, fiquei completamente fascinado quando escutei i am sitting in a room, tanto pela sonoridade, desenvolvida aos poucos, em processo lento, quanto pelo que estava ali envolvido (uma maneira muito poética de trabalhar musicalmente a ideia de que uma sala tem uma acústica específica). tanto que, quando dava aulas de arte sonora, mas até mesmo de criação e registro sonoro, sempre mostrava aos alunos da oi kabum! essa peça. e em seguida experimentávamos o processo: gravar uma fala ou alguns sons em uma sala. tocar essa gravação na mesma sala e gravá-la de novo. e novamente e assim por diante. presenciar o mistério da filtragem e reforço sucessivo de certas frequências até que a sala parecesse usar nosso estímulo inicial para expressar suas preferências, seu ser sonoro.
esses dias estava pensando sobre como essa música pode de fato ser dita canônica, dentro do âmbito da música experimental. por ser desconhecido no mundo afora, não fui convidado para a comemoração de 90 anos de alvin lucier, em que 90 artistas diferentes executavam a obra em diferentes espaços e condições. mas já tinha construído uma versão, em 2016, pensando em homenagear esse incansável explorador sonoro, falecido hoje (01 de dezembro de 2021).
a ideia era que, dada a força de i am sitting in a room, ligada às versões executadas pelo próprio lucier, haveria em toda sala, agora ligada à sua acústica, um potencial-lucier: o conjunto de frequências articuladas a partir do processo reiterativo de lucier como aspecto virtual para qualquer sala. e de certo modo, isso significava para mim que se filtrássemos a expressão de cada sala, sucessivamente e gradativamente, de toda sua força expressiva, o que sobraria ao final seria a voz do bom velhote.
espinafre (eu chamo o spinoza assim, perdão aos fãs) tem uma definição curiosa de alegria (o que engorda) e tristeza (o que mata), isto é, o que aumenta a potência de agir e o que diminui. com isso e com seu malabarismo pós-descartes, temos um livro que radicaliza a ideia de método geométrico até que algo que preze pela clareza e distinção se transforme em um labirinto o qual perdemos a chave. LOGO, é algo para lermos perdidos, imersos em ideias confusas, como alguém que padece de uma paixão para, com a ajuda das mentes que eternizaram seu deciframento etc CQD.
postado em 1 de setembro de 2021, categoria resenhas : spinoza
A fez C por causa de B. B fez C por causa de A. A e A não eram o mesmo. B e B não eram o mesmo. A e A eram homônimos. B e B eram homônimos. A e B estranharam. faziam C por motivos diferentes. A e B, respectivamente. perguntaram a C o que C achava. sobre C, é claro. C e C não eram o mesmo. C e C eram homônimos. C disse: A e B fizeram por O. na verdade, A e B eram O. A e B, estupefatos, exclamaram: Ooo. (ø)
em junho de 2020, o que agora é visto como parte do início da pandemia, eu escrevi uma postagem imaginando um devir otaku do mundo, pra mencionar a expressão da christine greiner.
1. 仮面ライダーの変身 (poses dos kamen riders). 2. dancinhas ridículas. 3. babymetal (turning japanese). 4. offline 自殺 (suicídio-desconexão).
como naqueles memes em que o que se espera é meramente uma projeção fantasiosa do real, eu me vi começando a cultivar um jardinzinho, aprendendo a tocar flauta 尺八, preferindo os encontros dos grupos de estudo e seminários virtuais do que os presenciais e pedindo vegetais orgânicos pra entrega.
então, para dar conta desse descompasso, fui impelido a fazer algo que o expressasse. “quando a vida não entrega, temos a arte”. e essa é a explicação da cena do pandinha dançarino no QI147. stay home and パラパラ.
ficamos de marcar, camila proto e eu, uma conversa sobre filosofia e arte, dado que ela também está fazendo pesquisa em filosofia da arte. andei ouvindo audio-livros dos diálogos de platão e agora, ao frequentar os podcasts do história da filosofia sem nenhum buraco (history of philosophy without any gaps), uma das coisas que estou curioso pra saber o que outros acham é o seguinte: o sócrates platônico em mais de uma ocasião fala sobre os problemas da retórica. eventualmente, ele lança o argumento: mas não sabe um médico mais de medicina do que um palestrante sagaz? não deveríamos ouvir falar, sobre nossos hábitos alimentares, o nutricionista ao invés do padeiro, a oferecer-nos deliciosas guloseimas?
às vezes tenho impressão que a filosofia cumpre um papel similar nos discursos de artistas àquele criticado por platão no que toca a retórica. no górgias, sócrates faz o grande sofista dizer que além-retórica, seria também capaz de ensinar a seus estudantes a virtude, o que o górgias histórico provavelmente nunca diria. ao invés de ferramenta, bem ou mal usada, essa deslizada torna possível uma crítica mais veemente à sofística, que então cairia em contradição. numa fala sobre música, quando a filosofia intervêm para dar valor e elevar ao bem o conteúdo, faço questão de garantir uma boa salada na hora do almoço. (mas é estranho: é como se o próprio nutricionista fizesse uma eulogia ao croissant.)
uns dias atrás gravei um pequeno vídeo filmando algumas plantas que comecei a cultivar aqui em casa durante a quarentena. na cartela de apresentação, exibo o título: “plantas crescendo”. a ideia é que matthias koole improvise musicalmente enquanto assiste um pedacinho desse processo, na verdade invisível. a gravação foi feita para a temporada 13 das quartas de improviso.
antes disso a carolina botura estava me falando sobre a conexão de seu novo trabalho artístico com as plantas (mais sobre isso em breve) e eu fiquei matutando o que eu acho sobre as elas. e cheguei à conclusão que o que me fascina tem a ver com a temporalidade, que na minha relação com as plantas o que presencio é seu lento crescimento. este é invisível, embora existam, na rotina, indícios aqui e ali; o processo é suficientemente lento para que minha memória não retenha os diferentes estados e eu não consiga apreender as diferenças entre um estado e outro. até que… ocorra uma micro-ruptura. e de-repente há uma mudança dentro de um “nada acontece”.
com as flores há uma condensação de energia e também de tempo: as coisas se ajustam mais à escala do cotidiano humano, mas em meio à um regime de atenção que dispenso às plantas, uma estrutura do “já passou” e do efêmero se estabelece. a flor mal floresce já fenece, a flor que estaria conectada a essa estética do crescimento mínimo e contínuo.
é sabido que o valor de uma coisa não é a coisa. que o valor de uma coisa é imaterial. e que uma arte imaterial chega, assim como os avanços financeiros mais derivativos, próximo a essa essência, onde o valor se converte em quantidade=dinheiro, evitando ao máximo a incorporação ou corporificação em algo. seja uma escultura imaterial (mas que deve possuir um contrato) ou uma expectativa de venda bem sucedida de galões de gasolina (mas que deve possuir um contrato), sentimo-nos próximos da abstração máxima e como no ditado, muitas vezes olhamos pro dedo ao invés de olhar para a lua.
mas há quem diga que, se o dedo é bem determinado, isto é, o absurdo de um artista fazer uma obra imaterial que custa milhões (ou apenas algumas centenas), ou um negociador gastar mais em garantias de negócios do que em negócios (movimentando no total mais que os negócios propriamente ditos), a lua nos evade. talvez não. se há contratos há ainda um lastro material, mas mesmo que não houvesse, a base que fornece a possibilidade de valorar ainda é a confiança. que ela se desincorpore também na arte, ao aproximar do abstrato, do imaterial, mergulha o artístico na pura realidade. expulsa de seu mundo imaginário, isto é, preso ao sensível, a arte torna-se parte do mundo, nosso mundo composto por coisas absolutamente imateriais como leis, dinheiro, acordos, significados. obviamente que a confiança deve estar vinculada a formas de vida, bastante materiais. mas há um movimento de fuga, o momento do realismo (capitalista).
(eu ainda acreditaria que o absurdo de tudo isso é a ideia de que concentrar renda é aceitável)
ocorre quando ficamos sabendo que um autor, artista ou intelectual é um ser humano exemplar, de caráter benevolente, ações íntegras, comportamento inspirador e trajetória imaculada. sua obra, entretanto é no todo ou ruim ou inclinada ao nefasto, abjeto, infame e até mesmo torpe. assinamos o autor então, passando a consumir sua produção, evidentemente ou medíocre ou imoral e perturbadora*, mas que, em que pesem as evidências, certamente representa um espírito altivo e é a expressão de algo próximo ao cidadão ideal, um modelo de conduta.
(* haverá os que identificarão traços benfazejos de positividade, ideologicamente posicionados, em seu corpus, salientando assim a verdade superior por trás do aspecto geral, superficialmente dispensável ou ainda impróprio)
é verdade que ando ouvindo as listas de álbuns de final de ano e conferindo aqui e ali os comentários sobre os animes que sairam. é também verdade que faço votos para que todos possam ter uma boa passagem de ano, e que eu mesmo realizarei uma pequena comemoração. ainda assim, e mesmo que meus colegas tenham tentado se despedir de 2020, dizendo-lhe um ruidoso adeus, parece-me que o ano permanece. digo: 2020 continua. na virada, por mais que tentemos nos alegrar, haverá uma melancolia inalienável, que faz bem não expurgar: o primeiro de janeiro chega, mas não o ano vindouro. este não chega porque 2020 conseguiu constituir-se como irmanado com a sindemia atual (a sinergia entre governo militaresco desastroso e pandemia). então, haverá algo de demoníaco, como nos relógios dos filmes de terror satânicos, indicando 6:66. e eu gostaria de reconhecer estar sobre esse encantamento. durante toda minha vida minha família se reunira para o réveillon e o mochi com ozoni do dia seguinte. esse ano não. de acordo, sinto uma certa exaustão e relutância de publicar agora os textos das séries aoty e retrospectiva. penso que seria melhor fazê-lo depois do janeiro das lágrimas e depois da primeira leva da vacinação. comemorar 2021 quando finalmente recebermos a segunda dose. daí, poder desejar e acreditar no desejo de um bom 2021.