em teoria, poder-se-ia fazer pão de queijo acrescentando outros elementos: cúrcuma, pimenta calabresa, fermento, cominho etc. mas talvez fosse melhor só colocar mais queijo mesmo.
quando falamos de teoria e não fazemos os pães de queijo, pode ser que sonhemos com novos sabores. ainda assim, ao final, o importante será: o queijo, o leite, o polvilho, os ovos.
toda teoria tem um momento de duvida: será que a tradição nos cega para a inovação? ainda assim, ao final do dia, o que queremos é comer uma boa iguaria.
se o ensaios sobre de teodicéia tem 417 pontos, excursões, respostas à objeções e anexos, o monadologia tem apenas 90 pontos e é um fantástico resumo, direto ao ponto. exemplo de como a maturidade pode permitir simplificações de pensamento (as obras do final da vida de iannis xenakis vêm a mente). a única questão que não fica clara para mim é §55, da demonstração da necessidade de deus à priori.
seria ainda necessário produzir um texto proporcionalmente equivalente, ainda mais curto em 18 pontos, sem introdução, e outro ainda, lacônico, com 4 pontos, com um título tal como os quatro princípios da providência divina e imensa. se o ensaio sobre a graça humana tem 18 parágrafos, leibniz não nos forneceu a versão mínima.
como aforista, me arrisco aqui apenas a fornecer o último trabalho, e se um livro cabe em parágrafos que cabem em ainda menos parágrafos, estes devem caber em frases, que por sua vês podem ser resumidas em conceitos de uma ou duas palavras.
muitas pessoas não percebem isso de imediato, mas a grande questão com a linguagem – arrisco, a grande contribuição da linguagem, é permitir com que digamos, pensemos e escrevamos coisa que discordamos veementemente, sempre usando o pronome eu.
há um panelaço contra marcado para 20h30. sentindo-se inspirado, ele então marca outro, a favor, para 21h. em 20h30, fora bolsonaro, panelas, xingamentos. nada de muito efetivo ou revolucionário. mas confirma um clima. marca um limite para alguns. e se eventualmente se estender por meses, talvez gere um esgotamento mental difícil de se opor. 21h, como disse joão flor de maio, o som do corona vírus se espalhando. mas tem gente que diz que não. aqui e ali mito, aquela situação deprimente de ouvir um ridículo protesto que se auto-refuta, mas não se anula. fica esse resíduo do patético, do tacanho. e então lembro do início de sylvia & bruno do lewis carroll, na qual os cidadãos gritam: mais impostos, menos pão!
é possível pensar uma estratégia conceitualmente mais ousada: o oponente propõe que seu contra-panelaço seja no mesmo horário que aquele ao qual é contra. assim, existiriam dois panelaços às n horas, um contra e um a favor (ou contra o contrário). mas como distinguí-los? quem pensa nisso já se equivoca: o importante não é que sejam discerníveis, mas que possam ser mobilizados, uma vez que indiscerníveis.
estávamos na ufmg para um encontro do grupo de pesquisa modos de presença nos fenômenos estéticos e no preâmbulo à reunião, lembrei de devolver petrogrado, xangai: as duas revoluções do século xx, de alain badiou, para thiago borges. em seguida, matreiro, retirei da minha mochila a floresta da destruição, um livro jogo de ian livingstone, e perguntei para filipe andrade, como boutade: – você já leu esse? ao que ele respondeu, com seu jeito gentil-formal habitual: – esse ainda não.
muito antes da instagramização de tudo me afastar da fotografia, artistas que evidenciavam a categoria da presença em suas performances eram, entretanto, rapidamente fragilizados por fotógrafos que, armados como aranhas, esquadrinhavam os movimentos, transfigurando o acontecimento potencial em pura possibilidade imagética. em heidegguês, gestellizavam. e não via artista algum resistir a tal canibalização, frente a um fotógrafo mergulhado em sua ânsia pelo futuro, confirmando clique a clique sua destinação. que a obra, registrada, possa perdurar. que a obra, divulgada, possa se difundir. a experiência, feita subordinar-se ao pretérito e ao porvir, encontra finalmente na presença mais uma maquiagem, um adereço.
o pessoal havia dito que a artista teta lírica se apresentava como teta, e que inseria sempre que podia a palavra “teta” no meio de sua fala, mesmo quando a conversa não fosse sobre seu personagem. daí imaginei alguém entendendo errado, dizendo: seu nome é tieta? mas carolina, em ato, superou minha imaginação em muito, porque achou que ela era realmente gaga. se realmente fosse, entretanto, por que o seria só para te e ta? em um livro altamente duvidoso mas divertido, escrito para estudantes de japonês nível jlpt n3, 失敗図鑑 – o livro ilustrado dos fracassos, há um capítulo dedicado a salvador dali. dizia dele, que era tão tímido que muitas vezes preferia viver dentro do personagem.
最高の画家は、自分自身が「芸術」でなくてはいけないからだ。例えば、水雨で上向きに固めたこの髭 。
(os grandes pintores devem se tornar eles mesmos “arte”. por exemplo. esse bigode apontando para cima, endurecido com água da chuva).
– Mas… deixe-me contar minha piada de gato. É muito curta e simples. Uma anfitriã vai dar um jantar e tem um belo bife de T-bone de três quilos sobre a bancada da cozinha, aguardando para ser preparado enquanto ela estiver conversando com os convidados na sala de estar, tomando alguns drinques e coisas do tipo. Mas então ela pede licença para ir até a cozinha preparar o bife… e ele não está mais lá. E o gato da família está num canto, limpando o rosto tranquilamente.
– O gato pegou o bife – disse Barney.
– Será? Os convidados são chamados, discutem a situação. O bife sumiu, todos os três quilos. Lá está o gato, parecendo bem alimentado e feliz. “Pese o gato”, alguém diz. Já tomaram alguns drinques, parece uma boa ideia. Então, eles vão até o banheiro e pesam o gato na balança. Ela marca exatos três quilos. Todos veem o peso indicado, e um convidado diz: “Pronto, achamos o bife”. Estão satisfeitos, agora sabem o que aconteceu. Têm uma prova empírica. Então, um deles fica apreensivo e diz, confuso: “Mas onde está o gato”?
– Já ouvi essa piada antes – disse Barney. – Ea inda não entendo a aplicação.
Anne disse:
– Essa piada apresenta a essência mais pura já alcançada para o problema da ontologia.
[Philip K. Dick. Os três estigmas de Palmer Eldritch. trad. Ludmila Hashimoto. Aleph, 2022, p. 238]
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[a piada do gato q pesava o mesmo q o bife q sumiu da cozinha. ao constatarem a igualdade, pesando o gato, disseram: achamos o bife. mas então, onde estaria o gato? “essa piada apresenta a essência mais pura já alcançada para o problema da ontologia”. mas por que? pense no vinho e na hóstia. e no mapa, que não é o território, e no vaso, que não é a ceramista.]
poucas vezes 5 minutos passam tão devagar quanto aquelas em que, esperando por sua prova de concurso, em frente à porta fechada do lamusa, você suspeita que ninguém virá, que toda a ansiedade e preparo das últimas três semanas foi em vão, que você foi desclassificado por algum motivo elusivo e que talvez houvesse, em meio a alguma retificação antiga, a necessidade de enviar algum e-mail, em algum momento, e que possivelmente ninguém iria avisá-lo disso, o domínio dessas minúcias fazendo parte do caráter dracônico da coisa, e provavelmente teria sido melhor não ter viajado de belo horizonte à curitiba de avião, com febre e inflamação no braço, carregando na mochila todos esses documentos impressos, cópias do projeto e planos de aula, 200 páginas, até mais.
é conhecimento tácito, dentro de cenas artísticas amadoras, que um artista que se apresenta no mesmo dia que outro assiste ao colega. invoquei tal injunção outro dia como “o princípio da amizade”, embora em seguida, para obter algum efeito cômico, tenha feito uma explicação que envolvia mais a noção de caridade: um músico sofre ouvir a música do outro. estávamos nos perguntando se deveríamos começar e eu comentei que faltava chegar o pessoal que ia tocar depois. haviam saído, mas logo chegaram. de todo modo, pude pensar um pouco sobre isso: a diferença entre caridade e amizade. o princípio, afinal, era realmente um de caridade. a amizade, eventualmente produzida, é algo que pode ou não florescer dali. provavelmente por isso que minha invocação tenha sido engraçada, mas não a explicação que seguiu.