1. ultimamente tem estado muito em voga dizer que música experimental é um termo guarda-chuva, mas que não é um gênero, e que na verdade, por suas origens (schaeffer na frança, experimentalistas nos eua), é algo que se tornou incômodo como denominação.
2. aí há pressupostos. creio poder organiza-los em dois blocos. (i) que é ruim fazer coisas que caem num gênero. que cair num gênero é ser encaixado, tornar-se produto reificado. que o que não se encaixa, é aberto e livre, é emancipado. (ii) que usar um termo com uma origem implica uma filiação. que essa filiação é mais negativa que positiva. que filiar-se é algo que subalternos fazem.
3. gostaria de apontar como é ruim pressupor que a ideia de gênero é negativa, mas vou começar criticando a ideia que pertencer a um gênero é algo negativo. como se então a absoluta maioria das músicas do mundo fossem de um escalão inferior e que só uma posição vanguardista de risco e abertura do anti-genérico pudesse erguer-se acima da indústria cultural.
4. ser enquadrado parece ser uma operação que encaixota e assim restringe e diminui. mas ser enquadrado é uma operação de categorização, a categorização identificada como ideologicamente negativa. categorizar algo em um gênero é localizar aquela prática dentro de um contexto estético-social e guiar as pessoas a ambientes específicos, no qual elas possam efetivamente navegar – encontrar cenas, traçar discursos.
5. zappa ser rock, marley ser reggae etc, ajudam a reconhecer tensões dentro desses gêneros e como eles acolhem a produção ao mesmo tempo em que se deixam moldar por ela; e mantém espaço para o não-convencional.
6. não é verdade que, por ser algo de vanguarda, não há quem imitar, não há condições de gêneros que guiam a produção dentro de música experimental. talvez apenas não haja um contingente suficiente para fazer com que noise, improvisação livre, gravação de campo etc tenham vidas autônomas. a música eletroacústica, fortemente institucionalizada nas universidades, tem.
7. em teoria o experimental é meta-gênero que organiza parcamente sobre os princípios da radicalidade, do inusitado e do incomum, gêneros diversos. é difícil realmente relacionar isso a (i) e (ii). do ponto de vista social, entretanto, recusar o nome que direciona pessoas a uma cena talvez seja não se identificar com a cena. querer fazer parte de outras cenas, querer circular mais, querer surpreender as pessoas tocando em outros palcos, para um público desavisado, por exemplo.
8. por outro lado, se é que experimental tem conotações normalmente negativas, “não me chame de experimental, venha ver meu show você também” soa como uma frase razoável de auto-promoção. por outro lado, imagine alguém do sertanejo recusar em geral seu gênero (ele recusa um subgênero quanto é vantajoso afunilar seu público alvo).
[dos rascunhos, maio de 2021; 3 anos depois parece que, em vez de um termo negativo, experimental passou a ser a nova palavra que traz ares de novidade aos produtos culturais – de modo que a batalha se tornaria outra – valeria a pena defender a circunscrição que orienta ouvintes a músicas menos convencionais, ou não – deixar as forças mercantis aplicarem a etiqueta como expediente de marketing (e há pessoas que confundem isso com algum problema mal formulado sobre democracia e elitismo etc – é preciso olhar a diferença entre festivais x cenas)]
o mundo já havia acabado. naquela mesa o lance de dados sempre obedecia a uma progressão aritmética. naquela velha mesa, tiras de madeira gastas, esburacadas, naquela casa, naquela praça, naquele quarteirão, ruas de asfalto gasto, esburacadas. progressões aritméticas. das árvores na rua, dos cestos de lixo na rua, dos postes na rua, das ruas no quarteirão, dos quarteirões no bairro. foi passeando e notando que desde então, desde o fim do mundo, tudo sempre obedecia a alguma progressão aritmética. foi passeando e notando que ele vislumbrou a possibilidade da grande morte. da morte que encerraria tudo. encerraria a sequência de todas as sequências. e que todas as sequências encerradas, seriam aritméticas.
como tenho apego às formas curtas ou muito curtas a frase ouvida, o provérbio, a mini-crônica, o mantra, a máxima e como o manancial de ideias é grande mas não inesgotável pois quem inventa muito esquece (como que para abrir espaço para o que virá) acontece de tempos em tempos anoto uma mesma ideia recorrente anoto-a bem parecido ou então, e descobri perguntando que isso não é normal alguns anos depois com exatamente as mesmas palavras
esse ano [2019] em faço uma exposição solo retrospectiva. vou ter de inventar um vídeo convite e por isso estava revisitando minhas tentativas nesse sentido. aparentemente, é o momento que eu aproveito para ser bagunçado e absurdo, profuso em “oportunidades”…
1. tenho um pequeno oratório em casa e penso que a hora de brilhar (e também, o caron batendo cabeça é mui elegante).
2. parecia a melhor ocasião para eu finalmente mostrar ao mundo como tenho de aparar toda semana os pelos do meu nariz.
3. e se a voz estivesse ao contrário, e o texto também?
4. uma espécie de indicação de “venha para essa festa bad trip você também” (mas é difícil conseguir isso no digital, fica um pouco fake não acham?).
5. passeando de trem chacoalhando a câmera com zoom e pensando “eu tenho dois trecos de 30 segundos que não servirão pra nada, mas posso encaixar aqui”.
6. queria porque queria queimar a caveira de cachorro.
7. está em cima da hora, estamos bêbados, mas dorothé acha melhor ter que não ter. então tá, e vou jogar o matthias de ponta cabeça.
8. em 2007, nossa concepção de jovial era colocar máscaras de stockhausen.
quando estudava na unicamp, andava muito com lucas araujo e mário del nunzio. inventamos, na época, uma tabela de conversões monetárias com duas unidades apenas: (1) salário do neymar (SN); (2) cachê do chico buarque (CB). assim, quando fosse pedir uma coxinha com suco na cantina, poderia, ao invés de dizer: “tá aqui, 5 reais”, você poderia dizer, “estou a pagar 625 dez-milhonavos de cachês do chico buarque por este lanche” (0.0000625 cbs). o que seria, obviamente, muito mais unidades do que se a conversão se desse em SNs.
triste com a morte do músico zbigniew karkowski, que chamávamos de zbig ou então karka (seguindo o costume de mário del nunzio). quando ficávamos irritados com sua grosseria ou então dando risadas, dado seus acessos de eterna adolescência, certamente tínhamos em mente que ele era um de nós – um sujeito que sobretudo amava fazer música de modo radical, um músico experimentalista, um “amigo do barulho”. não era, pois, apenas “mais um punk velho” ou então um “maldito polonês pós-guerra fria”, mesmo que normalmente agisse como um.
um dos primeiros contatos que tive com o noise foi a coletânea de remixes de persepolis, originalmente de iannis xenakis, que incluía “fazer sem fazer“, do zbig. essa coletânea marcou o som, ainda no contexto da música eletroacústica, que eu e del nunzio desenvolvemos entre 2003-2005. em 2007, já ingressados na crescente cena experimental brasileira saber, foi importante saber que karkowski tinha se tornado amigo de batavinho, panetone (crosa) e peter gossweiller.
alguns anos mais tardes j.-p. caron e mário organizariam shows dele. em uma das ocasiões, hospedado na sede do ibrasotope, ele estava quase chorando e com raiva, tendo brigado de alguma forma com o sukorski, olhou pra mim e disse “i don’t like you“, jogando uma lata de cerveja em direção à minha cara. depois, pra fazer as pazes, me ofereceu, de manhã em uma padaria, uma dose de vodka muito ruim. “um brinde”. tive de tomar.
quando ainda não nos conhecíamos fui a um show dele no sesc paulista. era uma sala pequena. karkowski tocou muito alto, talvez até demais, mas o pior é que havia pausas na segunda parte de seu show, reforçando os choques sonoros, mesmo depois que uma das caixas pifou, com direito a fumacinha. cobri os ouvidos com as mãos durante boa parte, mas saí meio surdo. quando voltava para casa, andando por uma avenida paulista deserta, tive a sensação de ter me transportado para uma realidade distópica, de calmaria e apatia após conflitos. isso foi bom. na verdade, mais que bom – foi marcante.
mais de uma vez tocou por 5 minutos porque estava bêbado demais. por essas e outras, apelidamos ele, pelas costas, brasileiramente, de zé bedeu krakovia, o karka. já gossweiller e crosa o chamavam de mestre. era um mestre, de certa forma, e guardei dois de seus pensamentos. de quando em quando mandava e-mails pro mário, muitas vezes com mensagens absolutamente irrelevantes – como quando se vangloriou de um time europeu ter ganho de um brasileiro no mundial de clubes de futebol. ao final da vida, soubemos que perguntou pro batavinho se sabia de algum xamã, afim de tentar outra maneira de combater seu câncer. quando morreu, sérgio pinto sugeriu que ao invés de silêncio, fizéssemos ruído. então:
dediquemos esse minuto de ruído em homenagem ao falecido zbigniew karkowski.
para chegar ao “tudo pode”, precisamos passar pelo “é assim que se faz”. é porque sem isso, as infinitas possibilidades se convertem em um mau infinito: qualquer coisa.
1. abrindo o pen drive, há duas pastas, ontem e hoje. o atendente pergunta: é ontem? ao que eu respondo, hoje, sempre hoje.
2. de novo a impossível tarefa: xerocar partituras edições urtext. sempre costumava falar isso apenas em tom de piada, mas hoje me ocorreu que talvez seja de propósito – o designer escolhendo o formato perfeito para afastar aqueles que querem trabalhos fáceis e rápidos, garantindo assim que compremos os originais. problemas para resolver? não é segredo que a vida prática tende a favorecer a apatia.
uai é acrônimo para unidade de atendimento integrado, o equivalente mineiro do poupa tempo, paulista. é uma instituição que acelera os trâmites estatais, sem entretanto eliminá-los. torna, portanto, os procedimentos suportáveis, servindo assim a uma dupla função – de aceleração dos processos, mas também de manutenção do aparato burocrático.
ao precisar renovar a carteira de identidade, vai-se ao uai. não sem antes agendar a ida. mas agendar a ida tem a função apenas de impedir que o local fique absolutamente lotado, porque de resto – devemos esperar na fila e pegar uma senha normal, cujo atendimento é definido por ordem de chegada.
dessa vez, ao entrar meio atônito na fila errada, tenho a estranha experiência de presenciar um senhor tendo um avc e entrando em convulsões. muita gente observa, eu não quero ser mais um destes. os seguranças não dominam como deveriam a arte dos primeiros socorros e o samu demora a chegar. um atendente se prontifica a evitar o pior, enquanto um rapaz, claramente perturbado, resmunga que amarelo desse jeito é melhor já chamar o iml.
uma hora depois, quando finalmente sou chamado no telão da sala de espera, eis que quem me atende é nosso pequeno herói. ele comenta com a colega que vai ter pesadelos essa noite. recolhe minhas digitais, minha assinatura e tira a foto de rosto, duas vezes (na segunda estou sorrindo). até sexta deve ficar pronta. se puder avalie o atendimento. aperto excelente e vou em busca de um café.
há algo de profundamente romântico na visão de william gibson sobre uma certa categoria de personagens. o artista como acontecimento precisa estar tão imerso no fazer a ponto de não se importar com a obra, com as conexões, com a difusão. ele é um agente da vontade, uma força da natureza: um robô lixeiro, uma menina cataléptica. ali, há uma confluência entre imagens do inconsciente, outsider art e o capital. é como se nise da oliveira tivesse de operar clandestinamente; teríamos acesso apenas a raros quadros misteriosos, aqui e ali. mas não temos o ponto de vista do artista – apenas do capitalista que quer caçar esse tesouro vivo – a intencionalidade cujo elemento humano é sublime – ao mesmo tempo nosso e estranho. sedutoramente estranho. pois haverá muitos a sonhar com a esquizofrenia, o robô lixeiro, a catalepsia.