cachaça

meu vô dizia: banana, bom. potássio, memória. salada. bom, sistema digestivo. exercício. bom: força, saúde. livro, bom. cabeça pensa. e arrematava enfaticamente: cachaça. bom, muito bom.

cachaça. bom. muito bom.

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a qualidade da cachaça não se encontra subordinada a uma função. a cachaça é a vitória contra o mundo do trabalho e do bem estar equilibrado. muito, concentra o bom. é o bom em si. a cachaça provoca o bem. entretanto, é preciso disciplina. acordar cedo. praticar a arte da inversão, meditando com a cabeça abaixo. e o capinar errático. só depois, então, o bar.


postado em 27 de novembro de 2019, categoria aforismos, citações : , , ,

culinária

1. coloquei hortelã ao invés de manjericão. “por que você fez isso?” eu substituí um item por outro.

2. pra fazer homus doce é trocar tahine por pasta de amendoim e azeite por mel. ao ser perguntado, de novo, a resposta envolve a ideia de substituição: eu só troquei “salgado” por “doce”.

3. a soma de duas temperaturas dá o mesmo valor que uma outra temperatura, mas não a mesma temperatura.

4. se culinária fosse uma arte experimental, diríamos: daqui a 10 anos ele começará a ter uma culinária própria.

5. mas não seria meu caso.


postado em 13 de novembro de 2019, categoria comentários : , , ,

contra

1. estou cansada do pouco que fiz e do muito que sei

2. você pede um caminho eu coloco uma pedra


postado em 9 de novembro de 2019, categoria prosa / poesia : , ,

desde que sejam insolúveis

em fragmento de história futura, livrinho de ficção futurológica/utópica de gabriel tarde, 1896, há um trecho especialmente interessante sobre a teologia dos neo-trogloditas, habitantes dos interiores da terra, agora em parte oca, escavadores que tiveram de se tornar, quando de um sol moribundo e uma era do gelo mortífera na superfície do planeta.

Falemos em primeiro lugar das ciências. Poder-se-ia pensar que, a partir do dia em que os astros e os meteoros, a fauna e a flora, cessaram de desempenhar qualquer papel em nossa vida, em que as múltiplas fontes da observação e da experiência cessaram de jorrar, a astrologia e a meteorologia desde então estanques, a zoologia e a botânica, transformadas em paleontologia pura, sem falar de sua aplicação à marinha, à guerra, à indústria, à agricultura, todas desde então da mais profunda inutilidade, não dariam sequer mais um passo adiante e cairiam no mais completo esquecimento. Afortunadamente, essas apreensões se demonstraram vãs. Admiremos a que ponto as ciências, outrora eminentemente úteis e indutivas, legadas pelo passado, tiveram o dom de apaixonar e de agitar pela primeira vez o grande público assim que adquiriram esse duplo caráter de se tornarem um objeto de luxo e uma matéria de dedução. O passado acumulou um tamanho amontoado indigesto de tabelas astronômicas, de memoriais e resenhas a propósito de medições, vivisseções, experimentações inumeráveis, que o espírito humano pode viver sobre esse fundo até a consumação dos séculos; já era tempo para que se pusesse ordem e se extraíssem as consequências desses materiais. Ora, a vantagem é grande, para as ciências de que falo, do ponto de vista de seu sucesso, de se apoiarem unicamente sobre testemunhos escritos, não mais sobre as percepções dos sentidos, e de invocarem a propósito de tudo a autoridade dos livros. (Pois dizemos hoje a biblioteca, ao passo que se dizia outrora a bíblia – evidentemente há uma grande diferença). Essa grande e inapreciável vantagem é a de que a extraordinária riqueza da biblioteca nos mais diversos documentos nunca deixa sem material um teórico engenhoso e basta para assegurar copiosamente, paternalmente, num mesmo banquete fraterno, as opiniões mais contraditórias. Da mesma forma, era a admirável abundância da legislação e da jurisprudência antigas em textos e sentenças de todas as cores que tornava os processos tão interessantes, quase tanto quanto as batalhas do populacho de Alexandria, a respeito de um iota teológico. Os debates de nossos sábios, as polêmicas relativas ao núcleo vitelino do ovo dos aracnídeos, ou ao aparelho digestivo dos infusórios: eis aí as questões candentes que nos agitam e que, se tivéssemos o infortúnio de possuir uma imprensa periódica, não deixariam de ensanguentar nossas ruas. Pois as questões inúteis e mesmo nocivas têm sempre o dom de apaixonar, desde que sejam insolúveis.

“pois as questões inúteis e mesmo nocivas têm sempre o dom de apaixonar, desde que sejam insolúveis”. taí uma boa caracterização irônica dos embates entre e dentro de doutrinas religiosas, em geral.


postado em 31 de outubro de 2019, categoria citações : , ,

o conceito omisso na obra de arte

diz adorno que se as obras de arte fossem intuitivas, estas seriam, segundo wagner, efeito sem causa. e portanto, ideológicas no mais alto grau.


postado em 29 de outubro de 2019, categoria aforismos : , , , , ,

colocar em caixinhas

eu por vezes considero tomar aqueles que discursam contra as caixinhas e as classificações como pessoas que, por não serem muito criativas, precisam compensar a falta do excesso incontrolável de pensamentos, caos ideário e dos impulsos mentais explosivos, com uma espécie de coroação do quase-impulso, do vago, esfumado e incompleto. na ausência de que a turbulência mental ameace subjugar seu eu, ou pior, afirma-lo contra você mesmo, incoerentemente e erraticamente, é natural que se elogie abertamente os fluxos e as intensidades livres como inerentemente positivos. o que é escasso reluz. eu me pergunto. 


postado em 29 de setembro de 2019, categoria aforismos : , , , ,

inefável ou não?

se a arte é essencialmente inefável, então não importa se falamos muito ou pouco dela, se teorizamos ou não, ela permanece como algo de fugidio, indeterminável.

se não é essencialmente inefável, mas apenas ocasionalmente, então seria bom criticarmos e refletirmos sobre as obras, a ver quais ainda permanecem misteriosas após escrutínio.

se não são nunca inefáveis, seria melhor combater as críticas como redutivas e as teorias como paralisadoras, afim de que, do vácuo das palavras surja um quase-nada, um não dizer contido, que se prolifera em nebulosidade, a ser tomada com alívio.

mas e a experiência, não pode ela, sob grades muito determinantes e referenciadas, acabar com a inefabilidade? (como evitar que esse tipo de argumento não recaia no terceiro caso?).

e vale almejar racionalmente o inefável? no caso heideggeriano, há um circundar, como que preparando as condições necessárias para sua erupção. ele, tão frágil, facilmente esmagado, soterrado, esquecido. (mas estamos então no segundo caso e há arte na qual nada floresce, ou no terceiro, mistificando). em jankélévitch trata-se de jogar a escada fora. (mas daí seria melhor estar no primeiro caso).


postado em 26 de setembro de 2019, categoria aforismos : , , , ,

três poemas curtos

1.
###
##hashtag
#hashtaghashtag

2.
odeia a burocracia?
seja a burocracia

3.
dramático mas não traumático
arte


postado em 10 de setembro de 2019, categoria prosa / poesia : ,

leituras recentes #2

valerie solanas: up your ass (1965). a peça de teatro que talvez possa ter deflagrado a raiva contra andy warhol [*]. junto a s.c.u.m., da própria autora, e the female man, da joanna russ, um retrato hiberbólico, exagerado, mas nem por isso falso, do machismo da época. “no seu rabo” foi aparentemente construído a partir da tipificação de todas atitudes escrotas de homens naquele momento, as quais as cenas preparam e atualizam, sempre com um rebate sarcástico de bongi, a personagem principal. diversão acompanhada de constrangimento.

matthew watkins: secrets of creation volume three: prime numbers, quantum physics and a journey to the centre of your mind (2013-5). livro de divulgação científica, explorando a relação entre números primos, física quântica e o caos determinista, a partir da função zeta de riemann (explicada no volume anterior). é o mais fraco dos 3 volumes ao meu ver, por ser menos matemático e gastar muito tempo considerando a admiração e perplexidade de cientistas e matemáticos acerca do tema. o interessante tema dos números como “arquétipo da ordem” é finalmente abordado, mas eu gostaria de algo mais ousado e menos sugestivo. continua a explicar coisas complexas sem usar matemática, de um modo maravilhosamente simples. uma coisa que aprendi, interessante: existe o campo da física denominada semi-clássica, que trabalha com a ideia de usar constantes discretas “quânticas” com o tamanho tendendo a zero, aproximando assim o sistema de um contínuo “clássico”.

fábio fernandes: os dias da peste (2009). livro bacana de ficção científica brasileira onde computadores vão aos poucos se transformando em inteligências construídas e tornando-se autônomos. o expediente literário usado, a história através de entradas em blog e podcasts, é tanto um ponto forte (consistente e curioso), quanto fraco. explico: embora blogueiro tardio e sobrevivente, lembro bem de como eu gostaria de evoluir para longe do clima de diário falastrão que frequentemente rolava. essa fidelidade a um retrato blogueiro tem, portanto, essa desvantagem que é usar um estilo cheio de vícios e sujeira, mundano, demasiado mundano. por outro lado, é interessante ver o típico desleixo e procrastinação de uma vida verossímil se sobrepondo e por vezes sobrepujando os acontecimentos extraordinários da realidade ficcional. ou seja, é ao mesmo tempo legal que o protagonista esqueça de coisas inusitadas e novidades para enrolar, escrever bobagens, se apaixonar e deixar de lado problemas que pareceriam prementes (como bem fazemos na nossa vida, mas talvez frente a situações bem menos supostamente empolgantes). adendo: feliz que o autor usou o argumento do trialismo cartesiano, ao invés do monótono dualismo simplista.

frank herbert: dune + dune messiah (1965-8 / 2007). enfrentei as 30 horas do audiobook dramatizado da mcmillan audio. valeu a pena? bem, duna é um clássico, muita gente leu, há muitos fãs e é uma das séries de fantasia mais conhecidas. a linguagem é bem límpida e tende ao infanto juvenil, o que eu não gosto muito. pra mim o problema principal é a falta de carisma dos personagens (muadib e alia); e a intriga shakespereana que pareceu-me ser sobrepujada rápido demais pela força fremen. em que pese o argumento da paixão de alia em messiah, que considerei sem graça, o final do livro me surpreendeu positivamente. agora, estando no terço da saga, continuo? não foi ruim mas é longo e fora dos meus interesses. entretanto é uma história muito bem contada, daquela que dá vontade de saber o final. e dá uma certa coceira de chegar ao deus minhoca petrolífera do lsd clarividente (no quarto livro – perdoem a linguagem, o estilo é bem sóbrio, mas olhem desenhos de capa, “deus imperador”).

fritz leiber: the black gondolier and other stories (2000). coletânea de contos de ficção esquisita, incluindo algumas pérolas que merecem ser lidas, em meio a coisas que são divertidas mas não me prendem. não encontrei traduções pro português, mas eu diria que deveriam existir. de:

  • the black gondolier (1964): e se o petróleo fosse senciente e maligno, a nos manipular civilizatoriamente?
  • the dreams of albert moreland (1945): nos sonhos o protagonista joga uma espécie de xadrez aterrorizando contra uma entidade monstruosa, a (talvez) influenciar o destino da segunda guerra mundial.
  • schizo jimmie (1960): jimmie contaminaria as pessoas com a loucura, para a qual ele mesmo seria imune. mas será mesmo? os perigos e tensões do artista na sociedade conservadora.
  • the lone wolf (tbc the creature from cleveland depths) (1962): quando proto-celulares (cutucadores) tornam-se conscientes e tomam conta da humanidade.

rodrigo nunes: organization of the organisationless: collective action after networks (2014). daqueles que você mesmo acha que leu, como não teria lido? mas não. e é preciso, pois se trata de um livrinho de 50 páginas que desfaz a ideia de que entre centralização e horizontalidade não tem nada no meio. por mais que isso pareça óbvio alguém tem de escrever algo bom sobre isso, e informado, e com lampejos valiosos. e então não há porque cegamente ou de má fé defender uma fluidez irreal para assim combater a rigidez, a hierarquia. há mais nos movimentos, ativismos e na prática de liderança do que isso. há todo o entremeio das redes. há estratégia e tática e convergência e fluidez. (e ao invés do ou que exclui o outro).


postado em 12 de agosto de 2019, categoria resenhas : , , , , , , , , , ,

silvia pfeifer

Angústia sensorial. De tanto ver o mundo ser transformado em imagem, de tanto ver a vida ser transformada em show de realidade patrocinada, os habitantes do gueto capitalista já não sabem o que é e o que não é real. Não sabem se seus sentimentos são seus mesmo ou se são ficção de personalidade. Bombardeados pelo delírio das ficções comerciais e não comerciais, eles vivem envolvidos com mundos que só existem no desejo. Vivem excitados por excessos de desejos inventados. Eles são inquietos perfis cadastrados nos autobahns de serviços midiáticos. São viciados, fascinados, movidos, inspirados, pirados, apaixonados por esse circo de ilusões descartáveis, incessantemente renováveis e espetaculares, que colonizou os sistemas nervosos centrais e periféricos e que dão prazer turístico à existência. Pessoas são parques temáticos e precisam de provocações sensuais, sensoriais. Precisam de transe, hipnose visionária pra aliviar a barra. Precisam de entretenimento mesmo que rime com pensamento. Precisam de diversão mesmo cheia de perturbação. Como sempre. Coliseu e Igreja sempre. Arena e púlpito alucinando as mentes e corações. Mas, agora, tá demais no supergueto capitalista. Precisam de outros mundos pra equilibrar com esse aqui. Mas que mundos? Habitantes do supergueto capitalista. Na cabeça deles, pra cada beijo e facada existe uma coisa pesquisada e o mais vagabundo ferro de passar tem a ver com uma pesquisa militar. Pra eles o invisível microscópico, o invisível cósmico já são coisas muito vulgares, o transcendental já é algo muito banal, quando o cosmos é algo chulo, quando o funcionamento do cérebro, apelidado de mente, ganha status de videogame clínico, que emoção espiritual resta aos habitantes de um supergueto capitalista? A religiosa ortodoxa sobrenatural? A política transformadora do mundo? A comunhão amorosa familiar? A estética artística industrializada? Sem transcendência possível, o que resta é a fascinação tecnológica pela ideia de espírito, esse fóssil religioso que nos ligaria a algo superior… O que resta é a interaçnao com imagens cada vez mais realistas e penetráveis. Parangolés digitais. Tron. Hellraiser. Tela me leva. Monitor você é meu obsessor. Organotron. Imagens que provoquem sensações, apenas sensações espirituais. Afinal de contas, espiritualidade é uma coisa que dá e passa. Fascinação/interação comercial não. Só resta para eles a fissura por aplicativos que evoquem a ideia de espírito. Máquinas que, injetadas, aumentem capacidades cognitivas, aumentem a sensação de elevação acima da mediocridade geral. Como uma super dose de heroína transformada em minúsculo robô sem efeitos colaterais. Espírito. O fóssil. Só resta a interação com imagens hiper-realistas que os levem para mundos não humanos, universos paralelos. E rostos de mulheres, cuja beleza sugere emoção espiritual, robótica ou angelical, demoníaca ou transcendental, se revezam no maior telão de Copa… Tentando aplacar a angústia sensorial com o máximo de fascinação/interação tecnológica, os habitantes do gueto capitalista concentram seu olhar no rosto da manequim número um no maior dos telões. Mundos não humanos. Universos paralelos. Fascinação comercial. Sensação espiritual. Mundos que só existem no desejo. Silvia Pfeifer.

fausto fawcett: vanessa von chrysler. em básico instinto, p. 46-8.


postado em 3 de agosto de 2019, categoria citações : , , , ,