o humano como envolvendo regras e inconcebível sem elas

escreve sellars, em linguagem, regras e comportamento:

dizer que humanos são animais racionais é dizer que o humano não é uma criatura de hábitos, mas sim de regras. quando deus criou adão, sussurrou em seu ouvido: “em todos contextos de ação, você reconhecerá regras, ainda que apenas a regra para tatear em busca de regras de reconhecimento. quando deixar de reconhecê-las, andará sobre quatro patas”.


postado em 5 de fevereiro de 2023, categoria tradução : , ,

por que a ordem do alfabeto é essa que temos?

Essa é uma questão intrigante porém irrespondível. O ancestral do nosso alfabeto é o alfabeto fenício de 19 caracteres (representando apenas consoantes), datado de por volta do século 14 AC. Em cerca de 1000 AC, ele foi usado como modelo pelos gregos, que adicionaram caracteres para representar as vogais. Este, por sua vez, tornou-se modelo para o alfabeto etrusco, do qual o antigo alfabeto romano e todos os alfabetos ocidentais subsequentes são derivados. Alguns caracteres foram adicionados ao longo dos séculos e outros caíram em desuso, de acordo com a necessidade de representar certos sons, mas a ordenação básica manteve-se a mesma. De fato, esta pode remeter até mesmo ao semítico do norte, o ancestral do fenício, que se desenvolveu por volta de 1700 AC. Em outras palavras, nós fazemos assim porque sempre fizemos assim, mas ninguém sabe o motivo pelo qual o fizemos em primeiro lugar.

Apesar da ordenação alfabética dos caracteres ter sido estabelecida tanto tempo atrás, a colocação das palavras em ordem alfabética só foi aperfeiçoada recentemente. Nos tempos medievais ela consistia em simplesmente colocar juntas todas as palavras começando com a, seguidas daquelas começadas por b e assim por diante. A ordem alfabética estrita só foi consolidada após o advento da imprensa.

Fonte: Questions of English, compilado e editado por Jeremy Marshall e Fred McDonald (Oxford University Press, 1996); traduzido daqui.


postado em 11 de janeiro de 2019, categoria tradução

des-desaceleracionismo

Embora a imagem cuidadosamente selecionada do capitalismo seja a de um dinamismo de assunção de riscos e inovação tecnológica, essa imagem de fato obscurece as fontes reais do dinamismo na economia. Desenvolvimentos como as ferrovias, a internet, a computação, vôos supersônicos, viagem espacial, satélites, farmacêuticos, softwares de reconhecimento de voz, nanotecnologia, ecrã tátil e fontes limpas de energia foram todos nutridos e guiados por estados e não corporações. Durante a época de ouro  da pesquisa e desenvolvimento do pós-guerra, dois terços da pesquisa e desenvolvimento foi financiada publicamente. E as décadas recentes viram o investimento em tecnologias de alto-risco declinar drasticamente. Com o os cortes neoliberais de despesa estatal, não é surpreendente que mudanças tecnológicas tenham diminuído após 1970. Em outras palavras, é o investimento coletivo, e não o privado, que tem sido o principal motor do desenvolvimento tecnológico. Invenções de alto-risco e novas tecnologias são muito arriscadas para o investimento privado dos capitalistas; figuras como Steve Jobs e Elon Musk maliciosamente ocultam sua dependência parasita a desenvolvimentos estatais. Da mesma forma, projetos bilhonários de larga escala são em última instância impulsionados por objetivos não-econômicos que excedem qualquer análise de custo-benefício. Projetos dessa escala e ambição são na verdade entravados por limitações de mercado, pois uma análise sóbria da sua viabilidade em termos capitalistas os revela como profundamente indesejáveis. Adicionalmente, alguns benefícios sociais (oferecidos por uma vacina contra o Ebola, por exemplo) não são buscados devido ao seu pequeno potencial lucrativo, enquanto em algumas áreas (como energia solar e carros elétricos), capitalistas são vistos ativamente impedindo o progresso, fazendo lobbies para acabar com subsídios a  energias renováveis e implementando leis para obstruir desenvolvimentos futuros. A indústria farmacêutica inteira fornece uma ilustração devastadora dos efeitos da monopolização da propriedade intelectual, enquanto a indústria da tecnologia é cada vez mais atormentada por trollagem de patentes. O capitalismo portanto atribui erroneamente as fontes de desenvolvimento tecnológico, veste a criatividade de uma camisa-de-força de acumulação de capital, restringe a imaginação social dentro dos parâmetros de análises de custo-benefício, e ainda ataca inovações anti-lucrativas. Para desencadear o avanço tecnológico, nós precisamos nos mover além capitalismo e liberar a criatividade dos seus atuais pontos de estrangulamento.

{inventing the future: postcapitalism and a world without work (inventando o futuro: pós-capitalismo e um mundo sem trabalho, verso books, 2016), nick srnicek e alex williams (tradução minha, p. 178-9)}


postado em 1 de maio de 2017, categoria citações, tradução : , , , , , ,

neoliberalismo

sempre corrijo mentalmente as palavras democracia por “oligarquia consultiva” e neoliberalismo por “oligarquismo estatal-econômico”, quando se referem à realidade brasileira. jacques rancière tem um bom livro, defendendo usos melhores para a palavra democracia (ódio à democracia, boi tempo, 2014). em inventing the future: postcapitalism and a world without work (inventando o futuro: pós-capitalismo e um mundo sem trabalho, verso books, 2016), nick srnicek e alex williams, fornecem uma boa definição, mais geral, para o neoliberalismo (tradução minha, p.53):

Enquanto liberais clássicos advogavam respeito por uma esfera naturalizada supostamente fora do controle estatal (as leis naturais do homem e do mercado), neoliberais entendiam que os mercados não são ‘naturais’. Mercados não emergem espontaneamente assim que o estado se afasta; ao invés, eles precisam ser conscientemente construídos, às vezes de baixo para cima. Por exemplo, não há um mercado natural para os bens comuns (água, ar fresco, terreno), ou para assistência médica, ou para educação. Esses e outros mercados precisam ser construídos através de um conjunto elaborado de constructos materiais, técnicos e legais. Mercados de carbono requereram anos para serem construídos; mercados de volatilidade existem em larga parte em função de modelos financeiros abstratos; até mesmo os mercados mais básicos requerem desenhos intrincados. Portanto, sob o neoliberalismo, o estado assume o papel significativo de criar mercados ‘naturais’. O estado também tem um papel importante de sustentar esses mercados – o neoliberalismo demanda que o estado defenda os direitos de propriedade, faça cumprir os contratos, imponha leis antitruste, reprima o dissenso social e mantenha a estabilidade dos preços a todo custo.


postado em 5 de abril de 2017, categoria citações, tradução : , , , , , ,

lrd e a cia

em drone and apocalypse: an exhibit catalog for the end of the world (zero books, 2015), cynthia wey (a personagem de joanna demers), conta que:

Mizutani tendia para o folk rock, e o Les Rallizes Dénudés parecia preparado para o sucesso. Mas em março de 1970, o baixista do LDR, Moriyasu Wakabayashi, junto a outros oito, sequestraram um jato da Japanese Airlines usando bombas tubo e espadas samurai. As consequências desse evento foram desastrosas para Mizutani e o LRD. Wakabayashi acabou em Pyongyang, Coréia do Norte, depois que os sequestradores cederam do seu plano inicial de voar para Cuba. Todos os passageiros foram eventualmente soltos, ilesos, mas a CIA concluiu que músicos do underground japonês eram uma ameaça aos interesses estados unidenses no leste asiático. LRD desbandou; outros músicos evitaram Mizutani; a CIA havia atado suas mãos pelos próximos meses. Mizutani se escondeu, primeiro em um bairro luxuoso em Tóquio e depois no monte Osore, em Honshu do norte, o portal para o inferno, segundo lendas locais.


postado em 2 de fevereiro de 2017, categoria excertos, tradução : , , , , , , , ,

depressão endêmica

mark fisher faleceu ontem. tinha um famoso blog, o k-punk. escreveu o livro capitalist realism – is there no alternative?, pela zero books, 2009, do qual traduzi esses parágrafos abaixo.

Um tipo de impotência reflexiva surge como visão de mundo não declarada entre os jovens britânicos, e tem seus correlatos em patologias amplamente difundidas. Muitos dos adolescentes com os quais trabalhei tinham problemas de saúde mental ou dificuldades de aprendizado. Depressão é endêmica. É a condição que é mais tratada pelo Serviço de Saúde Nacional, e está afligindo pessoas cada vez mais novas. O número de estudantes que tem alguma variante de dislexia é espantoso. Não é um exagero dizer que ser um adolescente no capitalismo tardio da Grã-Bretanha está próximo de ser reclassificado como uma doença. Essa patologização já impede qualquer possibilidade de politização. Ao privatizar esses problemas – trata-los como se fossem causados apenas por desequilíbrios químicos na neurologia individual e/ou pelo histórico familiar dos atingidos – qualquer questão relativa a causação social e sistêmica é descartada. Muitos dos estudantes adolescentes que eu encontrei pareciam estar em um estado que eu chamaria de hedonia depressiva. Depressão é normalmente caracterizada como um estado de anedonia, mas a condição a qual eu me refiro não é constituída tanto por uma inabilidade de ter prazer mas sim por uma inabilidade de fazer qualquer coisa exceto procurar por prazer. Há uma sensação de que ‘algo está faltando’ – mas não que essa satisfação misteriosa e ausente possa ser acessada além do princípio de prazer. Em muito isso é uma consequência da posição estrutural ambígua dos estudantes, encalhados entre seu antigo papel de sujeitos de instituições disciplinares e os seus novos status como consumidores de serviços. [p. 21-2]

A atual ontologia dominante nega qualquer possibilidade de uma causação social para as doenças mentais. A biologização-química das doenças mentais é obviamente estritamente comensurável com sua despolitização. Considerar as doenças mentais como problemas químico-biológicos individuais tem benefícios enormes para o capitalismo. Primeiro, reforça o movimento do Capital rumo a uma individualização atomística (você está doente devido a sua química cerebral). Segundo, provê um mercado enormemente lucrativo no qual multinacionais farmacêuticas podem empurrar seus produtos farmacêuticos (nós podemos curá-lo com nossos inibidores seletivos de recaptação de seratonina). Não é necessário dizer que todas as doenças mentais são neurologicamente instanciadas, mas isso não diz nada sobre sua causação. Se é verdade, por exemplo, que a depressão é constituída de níveis baixos de seratonina, o que ainda precisa ser explicado é porque indivíduos particulares têm níveis baixos de seratonina. Isso requer uma explicação social e política; e a tarefa de repolitizar as doenças mentais é urgente se a esquerda deseja desafiar o realismo capitalista. [p. 37-8]


postado em 14 de janeiro de 2017, categoria citações, tradução : , ,

plataformas sócio-cognitivas

traduzi um pequeno texto informal de peter wolfendale. vocês podem acessá-lo aqui, em português, com o original ao final.

Ao invés de pensar a tecnocracia como preservando um lugar privilegiado para uma classe pré-constituída de técnicos, nós deveríamos pensá-la como prescrevendo máxima explicitação não apenas no processo de divisão do trabalho entre indivíduos pré-constituídos, mas também nos processos de subjetivação nos quais esses indivíduos são constituídos e capacitados a ocupar esses papéis sociais. É esse último aspecto que separa a tecnocracia da meritocracia, que apenas se preocupa com uma divisão ótima do trabalho entre sujeitos cujas capacidades já estão constituídas, estando assim cega às ineficiências estruturais que os sistemas de classe injetam no processo político. Se nós vermos a tecnocracia dessa forma [aqui exposta], então poderemos perceber que ela coincide com o ideal da ausência de classes, conquanto ela tenha como objetivo superar todos os sistemas implícitos de diferenciação social que impedem a racionalização da estrutura funcional da sociedade.

(…) o aumento da penetração da tecnologia de informação no dia a dia oferece para nós uma oportunidade para demolir as barreiras informacionais que transformam mais ou menos classes sociais em economias sócio-cognitivas fechadas. Isso é dizer que ela [a mecanização] nos dá recursos para nos mover de formas implícitas de cognição social para formas explícitas, nas quais nossa habilidade de oferecer uns para os outros opções para ações aumentam exponencialmente. . Isso é algo que nós já vemos na proliferação de softwares de código aberto e mídias não proprietárias [creative commons], mas que idealmente precisaria ser extendido para todo o empenho prático humano, de modo que ao invés de reduzirmos a variação em ocupações permitidas numa sociedade igualitária, nós removeríamos os obstáculos cognitivos que fazem essas ocupações inacessíveis para aqueles que tem diferentes situações sócio-econômicas. (…)


postado em 7 de maio de 2016, categoria tradução : , , , , ,

a ontologia de feyerabend: pluralista, diacrônica, apofântica, empírica e democrática

tradução minha para a postagem de 02 de fevereiro de 2016, por terence blake, no seu blogue agent swarm.

Eu tenho examinado a filosofia continental recente em termos de 5 critérios de avaliação: pluralismo, diacronicidade, apofatismo, testabilidade e democracia. Para complementar essa análise eu gostaria de considerar o caso da filosofia última de Paul Feyerabend, como esboçada na sua correspondência, livremente disponível, com Isaac Ben-Israel, que ocorreu por um período de dois anos, se estendendo de setembro de 1988 a outubro de 1990.

(1) Pluralismo: Feyerabend é bastante conhecido por sua defesa de um pluralismo prático e teórico.

Mas poder-se-ia objetar que Feyerabend é um relativista e que a “pesquisa empírica” para ele poderia resultar em qualquer resultado que se deseje, porque no seu sistema “tudo vale” [anything goes]. Entretanto a melhor formulação para esse slogan polêmico é “tudo poderia funcionar (mas geralmente não funciona)” [anything could work (but mostly doesn’t)].

a realidade (ou o Ser) não tem estrutura bem-definida mas reage de modos diferentes a diferentes abordagens. Se abordado ao longo de décadas, por experimentos de uma complexidade cada vez maior, ele produz partículas elementares; se abordado de um modo mais “espiritual”, produz deuses. Algumas abordagens não levam a nada e colapsam.

(2) Diacrônica: por este motivo que Feyerabend às vezes recusa o rótulo de “relativista”, pois, de acordo com ele, “o relativismo pressupõe um quadro de referências fixo”. Para Feyerabend, a existência difundida de comunicação entre pessoas pertencentes a estruturas aparentemente incomensuráveis mostra que a noção de um quadro de referências que é fixo e impermeável tem uma aplicação apenas limitada:

pessoas com diferentes modos de vida e diferentes concepções da realidade podem aprender a comunicar umas com as outras, muitas vezes sem mesmo uma virada-gestáltica [gestalt-switch], o que significa, no que me concerne, que os conceitos que eles usam e as percepções que eles tem não estão resolvidas de uma vez por todas mas são ambíguas (32).

(3) Apofântica: Feyerabend distingue entre o Ser como realidade última, o qual é tanto indizível quanto incognoscível, e as realidades manifestas múltiplas que são produzidas através de nossa interação com ele, que são elas mesmas cognoscíveis. Aborde o Ser de um modo, ao longo de décadas de experimentos científicos, e ele produz partículas elementares, aborde-o de outro modo e ele manifesta os deuses homéricos:

Eu então distingo entre uma realidade última, ou Ser. O Ser não pode ser conhecido, nunca (eu tenho argumentos para tal). O que nós sabemos são as várias realidades manifestas, como o mundo dos deuses gregos, a cosmologia moderna etc. Estas são o resultado da interação entre o Ser e uma de suas partes relativamente independentes (32).

(4) Empírica: a diferença entre o pluralismo de Feyerabend e o relativismo é que nem todas as abordagens aos modos de existência são viáveis. Não há garantia que qualquer abordagem vá funcionar. O Ser é independente de nós e pode responder positivamente, o que frequentemente não é o caso.

Algumas abordagens não levam à nada e colapsam. De modo que eu diria que diferentes sociedades e diferentes epistemologias podem revelar diferentes aspectos do mundo, desde que o Ser (que tem mais de um aspecto) reaja apropriadamente (31).

(5) Democrática: Feyerabend conclui que a determinação do que é real e o que é simulacro não pode ser prerrogativa para uma ontologia abstrata e então de intelectuais que a promulguem.

Não há um quadro de referências fixo (diacronia), as realidades manifestas são múltiplas (pluralismo), o Real ou o Ser é incognoscível (apofantismo), e a experiência não pode preescrever nossa visão de mundo, mas pode excluir muitas cosmologias propostas (testabilidade).

Assim, a determinação do que é real depende da sua escolha em favor de uma cosmologia, de uma forma de vida ou outra, isto é, de uma decisão política. Isso leva Feyerabend a concluir:

uma epistemologia (mas o mesmo vale para a ontologia) sem política é incompleta e arbitrária (22).


postado em 15 de fevereiro de 2016, categoria reblog, tradução : , , ,