é comum, em apresentações de edições acadêmicas, que o autor revele ter sido auxiliado por muitos e seus apontamentos valiosos. “as falhas, entretanto, são todas de minha responsabilidade”, dirá em seguida, eximindo seus interlocutores de qualquer imputação possível de má influência. “os erros são meus”, entretanto, pode significar que, se há algo de novo ali, é na parte nova autoral que se deve buscar o que não procede. contribuir de modo inovativo e certeiro aconteceria apenas no trabalho de outrém, quando na função de conselheiro.
de minha parte, quando estou fazendo colagens musicais, digo exatamente o contrário. ali, não basta garantir ter feito meu melhor, mas sim ter feito o melhor possível. assim, as eventuais falhas serão todas de responsabilidade dos artistas sampleados e falarão sobre eles e não sobre mim, ou sobre a colagem. afinal, não se trata de meta-colagem, mas de metalinguagem (ou seja, não se trata de meta-metalinguagem). os acertos são de minha responsabilidade, enquanto os erros são todos culpa dos outros.
(meu álbum palavra palavra deve sair em breve, pelo estranhas ocupações. subi minha versão de rosa, de pixinguinha, em meu bandcamp, como tira-gosto)
na novela suprema da paranóia, os três estigmas de palmer eldritch, superando até mesmo o homem duplo, do mesmo philip k. dick, a droga chew-z alcança os pícaros da bad trip total ao lançar certos usuários em um espaço-tempo refeito e labiríntico cujas imagens retidas então populam a existência sóbria como efeitos colaterais, tornando igualmente labiríntica a determinação do que é real. afinal, estamos ou não ainda mergulhados no mundo alucinatório proporcionado pela mastigação da substância?
mas se palmer eldritch e sua aparência grotesca, mais os mostruosos glucks, não comparecessem. e se, ao invés de remeter a bifurcações de nossa vida, quando já tomamos uma decisão mas talvez tomássemos a outra, uma outra droga nos transportasse para uma realidade exatamente idêntica à nossa, mas ilusória? e fosse progressivamente difícil distinguir então se algo aconteceu aqui ou ali, da mesma forma que determinar qual das duas é de fato àquela em que há consequências materiais, se é que são apenas duas realidades e se é que existam consequências materiais, ou se essa materialidade não é ideal, efetiva nos n-mundos que são o labirinto do mesmo mundo vivido fenomenológico. fiquei imaginando que esse jogo de indiscerníveis e a confusão resultante nesse cubismo deveria ser contada em primeira pessoa, em um processo gradual de dissolução da confiança na consistência de um real que, entretanto, recusa a sair do banal.
como muitos outros, fiquei completamente fascinado quando escutei i am sitting in a room, tanto pela sonoridade, desenvolvida aos poucos, em processo lento, quanto pelo que estava ali envolvido (uma maneira muito poética de trabalhar musicalmente a ideia de que uma sala tem uma acústica específica). tanto que, quando dava aulas de arte sonora, mas até mesmo de criação e registro sonoro, sempre mostrava aos alunos da oi kabum! essa peça. e em seguida experimentávamos o processo: gravar uma fala ou alguns sons em uma sala. tocar essa gravação na mesma sala e gravá-la de novo. e novamente e assim por diante. presenciar o mistério da filtragem e reforço sucessivo de certas frequências até que a sala parecesse usar nosso estímulo inicial para expressar suas preferências, seu ser sonoro.
esses dias estava pensando sobre como essa música pode de fato ser dita canônica, dentro do âmbito da música experimental. por ser desconhecido no mundo afora, não fui convidado para a comemoração de 90 anos de alvin lucier, em que 90 artistas diferentes executavam a obra em diferentes espaços e condições. mas já tinha construído uma versão, em 2016, pensando em homenagear esse incansável explorador sonoro, falecido hoje (01 de dezembro de 2021).
a ideia era que, dada a força de i am sitting in a room, ligada às versões executadas pelo próprio lucier, haveria em toda sala, agora ligada à sua acústica, um potencial-lucier: o conjunto de frequências articuladas a partir do processo reiterativo de lucier como aspecto virtual para qualquer sala. e de certo modo, isso significava para mim que se filtrássemos a expressão de cada sala, sucessivamente e gradativamente, de toda sua força expressiva, o que sobraria ao final seria a voz do bom velhote.
uns dias atrás gravei um pequeno vídeo filmando algumas plantas que comecei a cultivar aqui em casa durante a quarentena. na cartela de apresentação, exibo o título: “plantas crescendo”. a ideia é que matthias koole improvise musicalmente enquanto assiste um pedacinho desse processo, na verdade invisível. a gravação foi feita para a temporada 13 das quartas de improviso.
antes disso a carolina botura estava me falando sobre a conexão de seu novo trabalho artístico com as plantas (mais sobre isso em breve) e eu fiquei matutando o que eu acho sobre as elas. e cheguei à conclusão que o que me fascina tem a ver com a temporalidade, que na minha relação com as plantas o que presencio é seu lento crescimento. este é invisível, embora existam, na rotina, indícios aqui e ali; o processo é suficientemente lento para que minha memória não retenha os diferentes estados e eu não consiga apreender as diferenças entre um estado e outro. até que… ocorra uma micro-ruptura. e de-repente há uma mudança dentro de um “nada acontece”.
com as flores há uma condensação de energia e também de tempo: as coisas se ajustam mais à escala do cotidiano humano, mas em meio à um regime de atenção que dispenso às plantas, uma estrutura do “já passou” e do efêmero se estabelece. a flor mal floresce já fenece, a flor que estaria conectada a essa estética do crescimento mínimo e contínuo.
é sabido que o valor de uma coisa não é a coisa. que o valor de uma coisa é imaterial. e que uma arte imaterial chega, assim como os avanços financeiros mais derivativos, próximo a essa essência, onde o valor se converte em quantidade=dinheiro, evitando ao máximo a incorporação ou corporificação em algo. seja uma escultura imaterial (mas que deve possuir um contrato) ou uma expectativa de venda bem sucedida de galões de gasolina (mas que deve possuir um contrato), sentimo-nos próximos da abstração máxima e como no ditado, muitas vezes olhamos pro dedo ao invés de olhar para a lua.
mas há quem diga que, se o dedo é bem determinado, isto é, o absurdo de um artista fazer uma obra imaterial que custa milhões (ou apenas algumas centenas), ou um negociador gastar mais em garantias de negócios do que em negócios (movimentando no total mais que os negócios propriamente ditos), a lua nos evade. talvez não. se há contratos há ainda um lastro material, mas mesmo que não houvesse, a base que fornece a possibilidade de valorar ainda é a confiança. que ela se desincorpore também na arte, ao aproximar do abstrato, do imaterial, mergulha o artístico na pura realidade. expulsa de seu mundo imaginário, isto é, preso ao sensível, a arte torna-se parte do mundo, nosso mundo composto por coisas absolutamente imateriais como leis, dinheiro, acordos, significados. obviamente que a confiança deve estar vinculada a formas de vida, bastante materiais. mas há um movimento de fuga, o momento do realismo (capitalista).
(eu ainda acreditaria que o absurdo de tudo isso é a ideia de que concentrar renda é aceitável)
é verdade que ando ouvindo as listas de álbuns de final de ano e conferindo aqui e ali os comentários sobre os animes que sairam. é também verdade que faço votos para que todos possam ter uma boa passagem de ano, e que eu mesmo realizarei uma pequena comemoração. ainda assim, e mesmo que meus colegas tenham tentado se despedir de 2020, dizendo-lhe um ruidoso adeus, parece-me que o ano permanece. digo: 2020 continua. na virada, por mais que tentemos nos alegrar, haverá uma melancolia inalienável, que faz bem não expurgar: o primeiro de janeiro chega, mas não o ano vindouro. este não chega porque 2020 conseguiu constituir-se como irmanado com a sindemia atual (a sinergia entre governo militaresco desastroso e pandemia). então, haverá algo de demoníaco, como nos relógios dos filmes de terror satânicos, indicando 6:66. e eu gostaria de reconhecer estar sobre esse encantamento. durante toda minha vida minha família se reunira para o réveillon e o mochi com ozoni do dia seguinte. esse ano não. de acordo, sinto uma certa exaustão e relutância de publicar agora os textos das séries aoty e retrospectiva. penso que seria melhor fazê-lo depois do janeiro das lágrimas e depois da primeira leva da vacinação. comemorar 2021 quando finalmente recebermos a segunda dose. daí, poder desejar e acreditar no desejo de um bom 2021.
1. a cidade tornara-se um labirinto global em constante expansão, enquanto nós continuávamos recolhidos. na pós-pandemia, reclusos que somos, finalmente entendíamos o valor da permanência. o apocalipse havia chegado e aceitávamos tratar-se de fim de mundo. a revelação viera da separação entre os elementos do binômio economia e saúde. Sustentabilidade enfim: maximizadores autônomos de urbanismo bricoleur nos forneciam os materiais necessários para o condicionamento paulatino rumo a circuitos de digitalização em espiral. a natureza era refeita e não precisávamos mais de sol nem pele, positivamente hikikomoris, e olhávamos para dentro. restáva-nos a infinita tarefa da construção da nova babilônia, imenso playground virtual de perpétua mobilidade daqueles que redescobriam o nomadismo verdadeiro.
2. no seu incrível conto the machine Stops (a máquina para), de 1908, e. m. forster especula uma humanidade cujos indivíduos vivem isolados em abrigos subterrâneos auto-sustentáveis, geridos por um eficiente sistema – a máquina. desdenham tanto o corpo quanto o personalismo, e sua existência toma a forma de um formigueiro cibernético, de fluxos de imagens, pra usar a expressão do vilém flusser. o problema é que não há um completo abandono da prisão de carne para uma nova liberdade. os humanos evitam contato direto, tanto visual não mediado quanto tátil, mas o fazem em uma dependência excessiva dos equipamentos que os circundam, sem entretanto fundir-se a estes. o estado de coisas, depois de um ponto ótimo, reproduz uma mecânica que degenera em atavismo, e o ressurgimento do religioso, no mecanicismo não-denominacional, é um sinal que o colapso se aproxima. a cessação de atividade finalmente dá lugar ao terror inesperado do silêncio informacional. aprender de segunda mão, tomar tudo como mediado, acaba por mostrar que sair da caverna para encontrar o sol não é tanto encontrar as ideias, mas a incorporação das mesmas em coisas. penso que seja uma forma de vida e seus problemas o que torna as articulações valiosas e vivas, em mutação contra a estagnação do puro espiritual.
uma vez, quando dava aula de registro e criação sonora, na oi kabum! bh, disse pra turma de adolescentes irriquietos: uma das coisas mais difíceis quando vamos captar som é ficarmos em silêncio. de modo que uma das grandes qualidades de um bom profissional da área é a capacidade de ficar em silêncio. pra ouvidos moucos, propus então treinarmos. após duas tentativas fracassadas, um dos alunos, já mais experiente, disse: quando precisar, fazemos; agora, que não é pra valer, não tem porquê.
o problema dessa resposta é que ela pressupõe que basta entender algo para conseguir fazê-lo. e que a boca, entre outros elementos, responde à vontade, ficando fechada quando queremos, sem mais. e que a vontade é livre. mas claro que o que vemos por aí não corresponde a isso. é fácil usar construções do tipo “se eu quisesse fazer x, faria”, sempre que falhamos em fazer x. assim, escamoteamos a incapacidade, transformando-a em falta de vontade, ao mesmo tempo em que tornamos a vontade algo inatingível. seja por estar sempre no futuro, seja por ser completamente livre, e assim, paradoxalmente, completamente controlada, em tese, mas também indomável.
nietzsche celebremente falou da incongruencia de separarmos poder e ação. no cenário atual, todos sabem que deve-se utilizar a máscara facial cobrindo a boca e o nariz. entender tal fato não é suficiente, entretanto, para fazer com que as pessoas não usem a máscara deixando o nariz de fora, ou como adereço inútil, pendurada no pescoço. no cenário da pandemia do covid-19, isso é babaquice. mas, exceto os bolsomínios, não vejo as pessoas bradando que têm vontade de serem babacas.
no documentário instrument, do grupo fugazi, eles comentam sobre como o contato com algumas bandas foi impactante em suas vidas – “tantas bandas explodiram nossas mentes ao longo dos anos”. E se perguntam se podem devolver o favor, no seguinte sentido: será que a grande motivação não será devolver o favor?
acho que esse tipo de motivação, ao juntar o impulso criativo com a propensão altruista, vale para tudo quanto é atividade significativa, mas há um adicional nas artes. é que é mais comum associar artes com a estética. e o que qualifica a estética são as experiências estéticas. eu acho que ter a mente explodida é ter uma experiência estética incrível.
o interessante de colocar as coisas nesses termos é que somos obrigados a priorizar a experiência estética, em relação ao julgamento estético: é a revelação que impulsiona o movimento. ela que é o favor, que então nos desafia a que seja devolvido. o julgamento sobre aquela banda, aquela música, aquela obra de arte, aquela experiência, segue e é importante. sem ele não será possível ter alguma chance de devolver o favor. esse movimento impede que a experiência seja sequestrada em favor do julgamento estético, das críticas, do significado, da análise da obra.
há nisso uma dialética. porque também muitas vezes componentes cognitivos, que envolvem lidar com os julgamentos estéticos e realizá-los, influem não apenas na nossa avaliação, mas na experiência do objeto em questão e na experiência da nossa avaliação (quando prestamos atenção na experiência que temos quando avaliamos algo). dá pra pensar na leitura de livros sobre esse viés: aquele momento do frio na espinha quando entendemos uma ideia, quando um conceito surge reluzente, quando uma fórmula muito perspicaz é avançada, quando uma abordagem reveladora se firma. porque a experiência de um texto ou de uma música inclui já nossas elocubrações e pensamentos sobre esse texto e música e sobre o que ele nos causa, juntamente com as sensações que ele provoca. então, não é que existe algo imediato – as sensações, e algo claramente mediado, separado, a cognição sobre. existe pensamento posterior, mas existe pensamento conjunto à experiência. e pensamentos modulam, reforçam, disparam emoções.
de toda forma, do ponto de vista da produção, aquele heroísmo dos que fornecem a dádiva (talvez seja isso que querem dizer com “a arte nos fornece uma promessa de felicidade”), o heróico daquela experiência (cognitivo-)estética, nos servirá de guia para julgamentos e ações que resultem na criação de outras experiências etc.