a nova babel virtual e o colapso da máquina

1. a cidade tornara-se um labirinto global em constante expansão, enquanto nós continuávamos recolhidos. na pós-pandemia, reclusos que somos, finalmente entendíamos o valor da permanência. o apocalipse havia chegado e aceitávamos tratar-se de fim de mundo. a revelação viera da separação entre os elementos do binômio economia e saúde. Sustentabilidade enfim: maximizadores autônomos de urbanismo bricoleur nos forneciam os materiais necessários para o condicionamento paulatino rumo a circuitos de digitalização em espiral. a natureza era refeita e não precisávamos mais de sol nem pele, positivamente hikikomoris, e olhávamos para dentro. restáva-nos a infinita tarefa da construção da nova babilônia, imenso playground virtual de perpétua mobilidade daqueles que redescobriam o nomadismo verdadeiro.

2. no seu incrível conto the machine Stops (a máquina para), de 1908, e. m. forster especula uma humanidade cujos indivíduos vivem isolados em abrigos subterrâneos auto-sustentáveis, geridos por um eficiente sistema – a máquina. desdenham tanto o corpo quanto o personalismo, e sua existência toma a forma de um formigueiro cibernético, de fluxos de imagens, pra usar a expressão do vilém flusser. o problema é que não há um completo abandono da prisão de carne para uma nova liberdade. os humanos evitam contato direto, tanto visual não mediado quanto tátil, mas o fazem em uma dependência excessiva dos equipamentos que os circundam, sem entretanto fundir-se a estes. o estado de coisas, depois de um ponto ótimo, reproduz uma mecânica que degenera em atavismo, e o ressurgimento do religioso, no mecanicismo não-denominacional, é um sinal que o colapso se aproxima. a cessação de atividade finalmente dá lugar ao terror inesperado do silêncio informacional. aprender de segunda mão, tomar tudo como mediado, acaba por mostrar que sair da caverna para encontrar o sol não é tanto encontrar as ideias, mas a incorporação das mesmas em coisas. penso que seja uma forma de vida e seus problemas o que torna as articulações valiosas e vivas, em mutação contra a estagnação do puro espiritual.


postado em 23 de dezembro de 2020, categoria comentários, livros, prosa / poesia : , , , , , ,

adestrar-se

uma vez, quando dava aula de registro e criação sonora, na oi kabum! bh, disse pra turma de adolescentes irriquietos: uma das coisas mais difíceis quando vamos captar som é ficarmos em silêncio. de modo que uma das grandes qualidades de um bom profissional da área é a capacidade de ficar em silêncio. pra ouvidos moucos, propus então treinarmos. após duas tentativas fracassadas, um dos alunos, já mais experiente, disse: quando precisar, fazemos; agora, que não é pra valer, não tem porquê.

o problema dessa resposta é que ela pressupõe que basta entender algo para conseguir fazê-lo. e que a boca, entre outros elementos, responde à vontade, ficando fechada quando queremos, sem mais. e que a vontade é livre. mas claro que o que vemos por aí não corresponde a isso. é fácil usar construções do tipo “se eu quisesse fazer x, faria”, sempre que falhamos em fazer x. assim, escamoteamos a incapacidade, transformando-a em falta de vontade, ao mesmo tempo em que tornamos a vontade algo inatingível. seja por estar sempre no futuro, seja por ser completamente livre, e assim, paradoxalmente, completamente controlada, em tese, mas também indomável.

nietzsche celebremente falou da incongruencia de separarmos poder e ação. no cenário atual, todos sabem que deve-se utilizar a máscara facial cobrindo a boca e o nariz. entender tal fato não é suficiente, entretanto, para fazer com que as pessoas não usem a máscara deixando o nariz de fora, ou como adereço inútil, pendurada no pescoço. no cenário da pandemia do covid-19, isso é babaquice. mas, exceto os bolsomínios, não vejo as pessoas bradando que têm vontade de serem babacas.


postado em 28 de novembro de 2020, categoria comentários : , , , , ,

devolver o favor

no documentário instrument, do grupo fugazi, eles comentam sobre como o contato com algumas bandas foi impactante em suas vidas – “tantas bandas explodiram nossas mentes ao longo dos anos”. E se perguntam se podem devolver o favor, no seguinte sentido: será que a grande motivação não será devolver o favor?

acho que esse tipo de motivação, ao juntar o impulso criativo com a propensão altruista, vale para tudo quanto é atividade significativa, mas há um adicional nas artes. é que é mais comum associar artes com a estética. e o que qualifica a estética são as experiências estéticas. eu acho que ter a mente explodida é ter uma experiência estética incrível.

o interessante de colocar as coisas nesses termos é que somos obrigados a priorizar a experiência estética, em relação ao julgamento estético: é a revelação que impulsiona o movimento. ela que é o favor, que então nos desafia a que seja devolvido. o julgamento sobre aquela banda, aquela música, aquela obra de arte, aquela experiência, segue e é importante. sem ele não será possível ter alguma chance de devolver o favor. esse movimento impede que a experiência seja sequestrada em favor do julgamento estético, das críticas, do significado, da análise da obra.

há nisso uma dialética. porque também muitas vezes componentes cognitivos, que envolvem lidar com os julgamentos estéticos e realizá-los, influem não apenas na nossa avaliação, mas na experiência do objeto em questão e na experiência da nossa avaliação (quando prestamos atenção na experiência que temos quando avaliamos algo). dá pra pensar na leitura de livros sobre esse viés: aquele momento do frio na espinha quando entendemos uma ideia, quando um conceito surge reluzente, quando uma fórmula muito perspicaz é avançada, quando uma abordagem reveladora se firma. porque a experiência de um texto ou de uma música inclui já nossas elocubrações e pensamentos sobre esse texto e música e sobre o que ele nos causa, juntamente com as sensações que ele provoca. então, não é que existe algo imediato – as sensações, e algo claramente mediado, separado, a cognição sobre. existe pensamento posterior, mas existe pensamento conjunto à experiência. e pensamentos modulam, reforçam, disparam emoções.

de toda forma, do ponto de vista da produção, aquele heroísmo dos que fornecem a dádiva (talvez seja isso que querem dizer com “a arte nos fornece uma promessa de felicidade”), o heróico daquela experiência (cognitivo-)estética, nos servirá de guia para julgamentos e ações que resultem na criação de outras experiências etc.


postado em 23 de setembro de 2020, categoria comentários : , , ,

“teoria musical na américa”

o músico habilidoso e comunicador brilhante adam neely publicou recentemente um vídeo de nome music theory and white supremacyteoria musical e supremacia branca. no geral, eu gostei do vídeo, mas demorei a ver porque o título de cara me incomodou. afinal, num cenário como o atual, tanto há várias teorias musicais quanto a própria ideia de uma teoria musical unificada é algo difícil de sustentar, mesmo se restringirmos a um âmbito específico como, no caso, aquele do qual trata – a música de concerto européia do século XVIII.

podemos dizer que o vídeo é sobre isso: uma única orientação, advinda de um teórico ligado a teorias supremacistas brancas, dominando a área teórica musical. o problema é, entretanto, de contextualização. de fato, o vídeo me convence de que nos estados unidos a teoria schenkeriana é de tal forma dominante que seja preciso mostrar que 1) existem várias outras opções teóricas e 2) não há porque automaticamente dar mais valor ao repertório o qual o schenkerianismo melhor aborda.

sobre o primeiro ponto: há tanto outras teorias adequadas para outros tipos de música, uma vez que se explicitou que a teoria musical (estado-unidense-schenkeriana) aborda melhor de mozart a brahms (ou algo assim); quanto outras opções de teoria analítica para o mesmo repertório. tanto que, pelo que consultei com colegas, schenker é um autor menor na europa, e eu mesmo na unicamp o estudei como uma das n abordagens possíveis e durante apenas alguns meses de uma das várias disciplinas. sobre o segundo ponto, deve ser uma situação de penetração ideológica tal que, por se manter mesmo não justificadmente, acaba por exigir uma explicitação completa do contexto no qual a teoria se coloca. e no caso, o contexto envolve declarações de supremacia dos autores germânicos e ligação de schenker com teorias eugênicas. ou seja: será preciso justificar a utilidade do da teoria e a importância do repertório para além do quadro teórico habitual e do uso não justificado do mesmo. imagine não ter uma série de bons argumentos e usar uma teoria bastante específica que eventualmente usa justificativas racistas para avançar sua importância…

mas há algo a mais: se você possui um quadro teórico baseado em algum autor ou conjunto de obras cujo contexto não é bem explicitado, sempre haverá o fantasma da ideologia a rondar: e isso levará à ideia mista de que talvez no fundo a própria técnica de análise schenkeriana teria algo de nazista. é só com a correta contextualização da mesma e definição de âmbito de aplicação que se pode fazer o trabalho de prepará-la e então considerá-la como uma ferramenta (muitas vezes inútil), dentre outras. (ademais, não deve ser difícil elencar tecnologias, achados científicos e produtos culturais, desenvolvidos sob ideologias e durante regimes espúrios, que contribuiram positivamente para a nossa vida. a explicação é a de que as criações nunca são determinadas pelas justificativas que são aplicadas a elas, e nem circunstritas às ideologias que influenciam sua origem).

agora, uma coisa é preciso dizer: assim como os estados unidenses dizem-se america, em seu estilo notoriamente auto-centrado e prepotente, precisamos explicitar que se a music theory está envolta em uma ideologia racista européia, tanto “music theory” quanto “européia” são possivelmente nomes que escondem um mesmo fundo ideológico, de uma nação umbigo do mundo. afinal, o que é a teoria musical em cada local? e pode-se dizer europeu de um desdobramento de uma ideia pouco quista de um pensador europeu, em um país da américa do norte?

não estou certo que neely realmente chama a “teoria musical” (estado-unidense), sob esse viés negativo, de “européia”. teria de rever o vídeo. o que quero apontar é a tentação de o fazer. pois parece que há um prazer tentador de imputar o problemas a outros como se não fosse possível que fôssemos parte dele (o que eu chamo de síndrome do congestionamento). nesse sentido, acho que vale resgatar a diferenciação entre origem e florescimento. lendo sobre os filósofos pré-socráticos, essa segunda é usada para falar do momento em que as ideias destes tomam corpo. se meus colegas da musicologia estão corretos e eu os entendi bem, o florescimento do schenkerianismo seria algo tipicamente estado-unidense.


postado em 14 de setembro de 2020, categoria comentários : , , , , , , , ,

filosofia de sobrevôo #1

teeteto acaba por parir sócrates parindo a impossibilidade do empirismo na epistemologia. o velho aristóteles faz listas e, conselho do pai, procura considerar todos os casos pra achar a certa medida. nem sempre suas categorias são razoáveis, entretanto. o início escravocrata misógeno da política é uma espécie de filtro, mas por fim chegamos na democracia. e na amizade, virtuosa. mas na realidade, é por interesse. há perigo, pois é possível que alguma força faça a terra sair dos trilhos. há nos sonhos, reminiscências do dia. hobbes também o acha. é nominalista, tal como goodman. mas qual a ideia desse começo, todo “tratado do humano”, para pular abruptamente no “todos contra todos”? imaginem os escritos políticos de hobbes e rosseau como simulações, que a partir de condições iniciais chegam no que chegam. hobbes leviatã, monarquia, contrato, covenant (pacto). voltando na cronologia, temos os estóicos helenistas, sêneca o estóico hipócrita, conselheiro de todos nós: viver com virtude, aproveitar o dia produtivamente, acreditar no seu caminho, responsabilizar-se pelo que pode e aceitar o cosmos. marcus aurelius, stoic on steróids, o estóico machão, a morte, tudo morre, teu irmão, aquela moça, eu, você, o cachorro, a plantinha, o imperador, o escravo, seus amores. morte e morte. tá vendo aquela pessoa que tá lendo trocentos livros à toa? vai morrer. tá vendo aquele outro que corretamente é homem de ação, embrenhado na política, pela melhoria da sociedade? vai morrer também. [sêneca: julius canus, que extendeu seu aprendizado até a morte ela mesma, foi o que levou mais longe a busca filosófica…]. por fim, temos epictetus, estóico romano raiz, ex-escravo. mas que adianta? chatice. o que me lembra os analectos de confúcio, máximas e conversa fiada (ainda estou na seção de auto-ajuda. só mudei a pratileira de origem). família, temperança de novo, os antigos. essas coisas. vocês sabiam que maquiaveli escrevia contos? descontando, na medida do possível, o machismo de época, com o tema “esposas são piores que diabos”, há lá um sarcasmo, contra a hipocrisia da igreja, que não envelhece. e giordano bruno, ah bruno menino bruno, é só o amor… que nos une. mas é claro que há todo tipo de união, pois o desejo cria e indetermina. o universo só é o todo potência-ato no sentido atemporal. no tempo toda matéria é animada, vide os necromantes. mas não temam que, não obstante a magia, aristótolo dixit: ao observar quem dorme, saberemos se é feliz, e o mais feliz dos homems é o filósofo.


postado em 8 de agosto de 2020, categoria comentários, livros : ,

saudades da civilização

coisas que sinto falta
1. café expresso
2. dançar contato improvisação
3. shows de música experimental
4. silêncio de quando os vizinhos estão fora de casa
5. a possibilidade remota e improvável de ir jogar futebol no domingo

coisas que não sinto falta
1. sair de casa


postado em 1 de julho de 2020, categoria comentários : , , ,

religião x crença

a religião é o campo em que se insiste muito na fé, por que? é que fé e crença não são sinônimos. lembrando de descartes, pensem nisso: quando aprendo que um triângulo tem três lados e 2 + 2 são 4, adquiro a crença de que seja assim. e o faço porque não existe em mim nenhum modo contra-causal que possa decidir no que eu deva acreditar, de modo a levar-me a uma crença diferente, nesses casos. impossível um triângulo de 4 lados, ou que seus três ângulos não resultem dois perpendiculares. já em outros, quando não há razões suficientes para se decidir por algo, deveremos lembrar que a liberdade pela indiferença é o nível mais baixo desta. poderíamos indagar o motivo. é que aquele que não usa sua capacidade racional de modo produtivo, com a certeza que deus lhe proveu de poder decidir por razões, finalmente se deixa levar pelo que lhe é confuso, abandona a inclinação ao luminoso para ser navegado pela escuridão. e a indiferença, o domínio da livre escolha, provém justamente alimento a esse lúgubre movimento. o que nos preocuparia deveras, pois levaria à descrença. entretanto, é possível direcionar nosso pensar, através de exercícios e experimentos mentais, e estabelecendo regras provisórias aqui e ali, de modo a podermos ver com mais clareza aquilo que era antes confuso, ou que suspeitávamos cheio de obscuridade. se assim fizermos, conquistaremos a liberdade no cultivo e manutenção da clareira do racional.

mas e no caso da fé? seu mecanismo doxástico não seria aquele justamente envolvendo a falta de crença em algum nível, a gerar crenças confusas em outro? e essas não seriam fatalmente acompanhadas por ainda outras crenças auxiliares não declaradas, subterrâneas, a se infiltrarem sem fundamento e a lançarem trevas sobre o edifício da ação? se é verdade que deus não nos quis enganar, então por que nos inculcaria misteriosos ensinamentos obscuros? ensinamentos que, na categoria do obscuro aceitável, a fé, ainda assim, pela vontade, que é infinita, se expandiriam muito além do que podem. fé que, ligando-se à esfera do poder, a potencializar a confusão e obscuridade, interfeririam no que a liberdade alcançaria, até que seja preciso reter os ensinamentos d’o mundo, e dar inúmeras voltas a dizer que a terra move-se sem mover-se, nos turbilhões do espaço. lembremos das boas regras e direcionemos o espírito. é preciso que cada coisa fique no seu lugar. a religião organiza a falta de crença: esse é seu espaço. ou assim talvez pensasse secretamente o filósofo, de máscara no teatro do mundo.


postado em 3 de junho de 2020, categoria comentários : , , , , ,

3 nietzsches

bataille quer delirar junto a nietzsche, rumo à morte e à dissolução do homem, seu ultrapassamento, e por isso escreve um diário confessional, em uma frança ocupada, agregando a ele um compilado inspirador e uma defesa. deleuze só tem olhos para a filosofia, então apara as pontas, seleciona e reorganiza normalizando, e de lá retira argumentos consistentes e um sistema defensável. klossowski está interessado na pessoa e na obra, detendo-se em pormenores, contradições, e vasculhando cartas, traçando os caminhos tortuosos do delírio à filosofia e de volta.

todos eles são fascinados pela última fase de nietzsche. mas nela, bataille pela loucura, deleuze pelas ideias, klossowski pelo humano. um se irmana e é imersivo, outro seleciona e é conjuntivo, o último acolhe e é disjuntivo.


postado em 28 de maio de 2020, categoria comentários, livros : , , , , ,

a dificuldade de dizer não

sarah gottlieb escreveu um belo e pequeno texto sobre tabus que atrapalham uma ética quanto à contenção do sexual indevido dentro da prática do contato improvisação. um deles envolve a dificuldade de dizer não, ou seja: o mito de que dizer não é fácil. ao ler, além de concordar, não pude deixar de comparar com a minha vivência diária, como sofredor de misofonia (irritação crônica com certos pequenos barulhos de proveniência humana). pois, em âmbito diferente e com as devidas modificações, ainda assim reconheço o banho de emoções que tomo ao reclamar com as pessoas sobre os seus comportamentos sonoros (a principal ocorrência é o pedido para que usuários de telefone celular utilizem o aparelho com fones de ouvido ou então desliguem o som deste). com isso quero dizer apenas: o mito é aplicável a outros âmbitos, e a descrição abaixo pode servir de guia para a construção de outros relatos. de toda forma, segue minha tradução das etapas envolvidas, de parar de dançar até dizer não e depois.

Primeiro, tenho que reconhecer que estou me sentindo desconfortável. Como fui criada como mulher, nutrindo a expectativa de que devesse me adaptar emocionalmente com facilidade e priorizar os outros, eu normalmente ignoro esse sentimento algumas vezes antes de aceitar que ele é forte o suficiente para merecer atenção.

Então, para ter certeza, tenho de checar se a fonte do meu desconforto é outra pessoa, e não coisa da minha cabeça ou disposição.

Então, preencho-me de uma sensação mista de decepção, medo e ansiedade (assim como medo, raiva ou qualquer outro coquetel de emoções intensas que possam estar relacionadas aos detalhes específicos da experiência atual, traumas passados, alguma resposta a outros fatores ambientais etc.).

Em seguida, tenho que me acalmar usando estratégias desenvolvidas ao longo de uma vida a defender-se de avanços sexuais indesejados. Eu me encarrego de avaliar a situação com cuidado, identificando a natureza da pressão que estou enfrentando. Relembro que não preciso entender completamente minha experiência ou justifica-la, e que o mero fato de estar a sentir uma transgressão a torna válida. Relembro que mereço detê-la imediatamente.

Nesta fase, eu também realizo muitos cuidados, subconscientemente. Fico preocupado com a outra pessoa, sinto-me culpada pela possibilidade de que elas se sintam desconfortáveis, atacadas ou ofendidas. Experiencio também medo de uma reação, raiva ou violência. Em uma fração de segundo, estou analisando o quão segura me sinto, considerando minhas opções para escapar e / ou mudar a situação, e tomando uma decisão sobre como e o que dizer para que eu possa restabelecer meu próprio conforto e bem-estar com o resultado menos violento.

Então eu preciso encontrar minha voz. Eu preciso respirar fundo. Eu preciso realmente falar. Eu sempre digo menos do que sinto. Eu sempre minimizo meu desconforto, peço desculpas ou comunico que não é culpa da outra pessoa, mesmo que absolutamente seja.

E mesmo que tudo corra bem e minha mensagem seja imediatamente ouvida, preciso proteger meu coração, muito rústico, e procurar uma maneira segura de sair dessa experiência. Preciso encontrar uma pessoa de segurança para sentar ao lado, pessoa que, dado o contexto, pode ou não estar presente. Eu preciso acalmar meu sistema nervoso e me recuperar de um estado muito agitado. Ter que definir limites verbais contra transgressões sexuais é muito perturbador, e a adrenalina pode me derrubar por dias.

Esse processo inteiro pode levar 10 segundos.

em um dos encontros de estudos sobre contato improvisação que a renata campos está conduzindo, discutimos a partir desse texto. lá surgiu a questão sobre a existência de alguma de melhorar a lida com o desconforto de dizer não, de reclamar, de trazer à tona. alguma forma de diminuir a dor de fazê-lo, de quebrar a resistência que temos a fazê-lo, em diferentes níveis e diferentes situações. no sentido de: existem exercícios possíveis para tal? a conversa sobre o assunto é certamente um deles. mas há outros? (por exemplo, alguma técnica de psicologia prática).


postado em 23 de maio de 2020, categoria comentários, dança : , , , ,

ao invés de adiar, viver o fim do mundo

“então, talvez o que a gente tenha de fazer é um paraquedas. não eliminar a queda, mas inventar e fabricar milhares de paraquedas coloridos, divertidos, inclusive prazerosos.” diz krenak num livrinho com 3 palestras curtas (ideias para adiar o fim do mundo). é uma mensagem de que é preciso viver bem o fim do mundo, passar por ele bem, ou melhor, perdurar e conviver com ele. porque um fim do mundo da civilização é necessário, mas há uma tragédia dentro dele que deve ser evitada, que é a tragédia da vida mal vivida, enquanto esse fim acontece.

apesar dos tons eminentemente cristãos, poderíamos dizer “apocalipse, não fim do mundo”. isto é, desvelamento, revelação. mas, como é viver dentro do desvelamento, da revelação? talvez seja como cair.


postado em 9 de maio de 2020, categoria comentários, livros : , ,