vai que

sonhava com o dia em que iria encontrar uma pessoa, e ela ia ficar pelada. essa pessoa seria linda. e isso ia mudar tudo.

sonhava com uma xícara de café. ia beber um gole dessa xícara. e o café estaria realmente especial. e tudo então adquiriria sentido.

estava em busca da batida perfeita.

guardou dinheiro para ir no show da sua vida.

pensou agora vai.

dando um jeitinho, como o gnomo, se formos devagar, quando estacionamos o carro. afasta um pouquinho o outro carro e o nosso cabe exato na vaga.

dando um jeitinho, quem sabe tudo não transmuta, como na parábola messiânica de benjamin.

ou tudo muda, ou tudo fica igual, mas resplandesce.

vai que.


postado em 23 de março de 2021, categoria prosa / poesia : , , ,

a coleção particular

lendo o discurso preliminar sobre o acordo da fé com a razão de leibniz (em ensaios de teodiceia), ou então a origem do drama barroco alemão de walter benjamin, vemos desfilar diversas referências a autores e obras diversas, obscuras e datadas. de modo que muito dificilmente vamos consulta-las ou checar sua proveniência. no caso de benjamin, inclusive, o próprio autor alerta para essa peculiaridade: afora calderón, que está lá como contraponto (e é espanhol), quem conhecerá os objetos da pesquisa, aqui transformada em texto?

parece que, acertadamente, georges perec viu nisso uma grande potência. essa existência lateral, imaginada, a todo momento deslizando para a ficção, construindo a prática de ler sem conhecer efetivamente (porque apreendemos as posições, conceitos e conclusões, mas de onde partem é nebuloso). e nisso teve a astúcia de deslocar o tema para a área na qual a questão da autenticidade era dado maior valor: a pintura. (e é interessante imaginar como às vezes parece haver mais preocupação com a pintura do que com a pesquisa social, nesse sentido – penso nos inúmeros estudos forjados contra a renda básica universal, por exemplo, como os que aparecem no livrinho divertido de rutger breger, uma utopia para realistas).

autores como simon reynolds e david toop causam por vezes grande angústia na leitura porque, referenciando uma quantidade enorme de canções e acontecimentos musicais, evocam a necessidade de conhecer os objetos abordados. ao invés de borrões e passagens, obstáculos e opacidade. um outro exemplo desse tipo de escrita que bombardeia referências, em música, é dado por glenn watkins no seu pirâmides no louvre – um livro sobre o pós-modernismo na música, que de tão desconhecido entre as pessoas da minha área, me parecia apócrifo. até hoje me pergunto se a citação de stravisnky na minha dissertação, isto é “tudo o que me interessa, tudo o que eu amo, eu desejo fazê-lo meu”, que de lá veio, não é pura ficção. de todo modo, seria interessante verificar quais os modelos existentes que perec usou para ativar sua imaginação, como stravinsky, que como finnissy e peter wustmann, para elaborar seus corais, inspirou-se em gesualdo, compositor do qual watkins é de fato especialista.


postado em 22 de setembro de 2017, categoria livros : , , , , , , , , , , , , , , , ,

aura

christian wolff dizia sobre tocar notas que não importava o que você fizesse, acaba soando como uma melodia. nas reviravoltas da história e nas intrigas políticas sempre queremos enxergar um plano, vislumbrar uma estratégia, e as coisas sempre acabam tendo um motivo (pense nas fases do espírito). ademais, dada uma sequência de números qualquer, um padrão é inevitável. isto é, o padrão é a forma da nossa apreensão de uma sequência. da mesma forma, não importa o quão reprodutível, despersonalizada e genérica uma obra artística seja: acaba tendo aura. essa sombra monadológica.


postado em 10 de junho de 2017, categoria aforismos : , , , , , , ,

artist statement

meu trabalho abarca todas as formas de arte, incluindo a música experimental, a videoarte, a performance e a literatura, mas não a pintura (e o desenho (e também não estritamente a escultura, o circo e certos tipos de poesia lírica)). isso entretanto não significa desprezar a história dessa grande arte que de vermeer a rothko, passando por turner, encantou ao mundo, e mereceu até mesmo um conto especialmente inspirado de perec (a coleção particular). muito pelo contrário. de modo que meu objetivo final seria criar uma obra de arte cuja alma fosse finalmente indiscernível daquela que, aos espíritos mais refinados, amorosos e atentos, pode-se enfim observar como pertencendo ao cravo bem temperado, de johan sebastian bach. que essa obra não seja uma pintura, mas sim uma coleção de peças musicais, não é aqui relevante (e até onde eu saiba, ela tampouco inspira-se em temas pictográficos, como ferneyhough ao referir-se a matta, em la terre est un homme (não que eu goste muito dessa música, prefiro antes terrain, ou a ópera em torno de walter benjamin (aliás, um escritor medíocre)). é claro, essa obra em si, a que eu me referia, fruto futuro de meus mais empenhados esforços e sonho constante de meus empreendimentos mais delirantes, pouco teria a ver com os dois volumes de 24 prelúdios e fugas, de dó maior, subindo até si menor, duas vezes, como duplos disjuntivos. talvez, e estou consciente da tênue esperança que, como o fio de ariadne, me conduz pelo labirinto da intuição humana (com a diferença em relação ao mito de que, no caso, nem o próprio arquiteto, ao construí-lo, diferentemente de dédalo, entendia bem o que exatamente eram suas paredes, e ficava inteiramente perplexo perante o conceito de saída…), exista essa possibilidade. então, se o conjunto de minha obra, da biografia póstuma, às minhas participações em passeatas, por fim chegando aos períodos de silêncio, aos panelaços, à síntese fm e na conclusão de que uma única fixação me perseguia, ou antes que eu a perscrutava, repetidamente, infatigável, sempre e constantemente, pois bem, se ele ao menos tangenciar essa ideia, mas bem melhor seria atingi-la por completo e então minha vida, como tantas outras, não terá sido uma completa perda de tempo.

 


postado em 27 de fevereiro de 2016, categoria crônicas, publicitade : , , , , , , , , , , , ,