onde agora eu descarrego minha raiva? (a raiva em música não é uma questão de ruído/barulho, mas de uma exacerbação da fisicalidade.)
onde agora eu perco tempo? (nem mesmo livros de filosofia enfadonhos são tão improdutivos quanto as sonatas de mozart.)
onde eu passo meus dias de veraneio? (se ao menos eu conseguisse de fato tomar gosto pela jardinagem e pela culinária.)
postado em 14 de dezembro de 2015, categoria crônicas : música, ócio, piano, raiva, veraneio, wolfgang amadeus mozart
esqueça blade runner, androides sonham com ovelhas eletrônicas.
1. (pg. 16-8)
– Minha programação de hoje aponta uma depressão autoacusatória de seis horas – disse Iran.
– Quê? Pra que você vai escolher isso? – Aquilo desafiava todo o propósito do sintetizador de ânimo. – Nem sabia que você podia escolher algo assim – disse, sorumbático.
-Uma tarde, eu estava sentada aqui e naturalmente liguei no Buster Gente Fina e Seus Amigos Gente Boa, e ele estava falando sobre uma notícia importante que estava prestes a divulgar, só que aí veio uma propaganda horrível, que eu odeio; você sabe qual é, aquela do Protetor Genital de Chumbo Mountibank. Daí, por um minuto eu desliguei o som. Então ouvi o prédio, este prédio; aquele som de… – e ela fez um gesto vago.
-Apartamentos vazios – disse Rick. Às vezes ele os ouvia à noite, quando deveria estar dormindo. Nessa época, um prédio de condaptos ocupado só pela metade podia ganhar uma alta classificação no sistema de densidade demográfica; lá onde, antes da guerra, ficavam os condomínios residenciais, era possível encontrar prédios totalmente vazios… pelo menos, era o que ele tinha ouvido falar. Ele havia se mantido alheio à informação; como a maioria das pessoas, não se interessou em ir lá conferir por conta própria.
-Nessa hora – Iran disse -, quando tirei o som da TV, eu estava no estado de espírito 382; tinha acabado de escolher. Assim, embora ouvisse o vazio intelectualmente, não conseguia senti-lo. Minha primeira reação foi de gratidão por nós termos podido comprar um sintetizador Penfield. Só que aí senti como isso era doentio, perceber a ausência de vida, não só no prédio, mas em tudo, e não reagir a nada, percebe? Não, acho que você não entende. É que isso passou a ser considerado uma indicação de doença mental; chamam-na de “ausência de afeto adequado”. Então deixei o som desligado e fiquei testando o sintetizador de ânimo até que finalmente descobri um ajuste para desilusão. – Seu rosto grave e petulante se mostrou satisfeito, como se ela tivesse descoberto algo importante. – Por isso eu programo esse sentimento duas vezes por mês; acho que é um tempo razoável para me sentir desiludida em relação a tudo, em relação a ter ficado na Terra depois que todo mundo, a ralé, emigrou. Concorda?
-Mas um estado de espírito desses – disse Rick – pode fazer com que você fique nele, em vez de selecionar outro. Uma desilusão como essa, a respeito da realidade total, se autoperpetua.
-Programo um reajuste automático para três horas depois – sua mulher disse, insinuante. – Um 481. Percepção de múltiplas possibilidades abertas pra mim no futuro; uma nova esperança que…
-Conheço bem o 481 – ele interrompeu. Tinha escolhido essa combinação várias vezes; confiava bastante nela. – Escuta – disse, se sentando em sua cama e puxando as mãos dela para que ficasse ao seu lado: – Mesmo com uma interrupção automática, é perigoso mergulhar numa depressão, de qualquer tipo. Esquece o que você programou e eu vou esquecer o que eu programei; vamos os dois digitar um 104 e ter essa experiência juntos, e aí você continua nesse estado de espírito enquanto eu troco o meu por minha atitude profissional de costume. Assim eu vou querer dar um pulo no terraço, checar a ovelha e depois ir pro escritório; nesse meio-tempo, vou saber que você não ficou aqui mofando com a TV desligada. – Ele soltou os dedos finos e longos dela, passeou pelo espaçoso apartamento até a sala de estar, que ainda exalava um cheiro suave dos cigarros da noite anterior. Então ligou a TV. Ouviu a voz de Iran vir lá de sua cama.
– Não suporto TV antes do café da manhã.
– Escolhe o 888 – disse Rick enquanto a válvula da TV esquentava. – Vontade de assistir TV, não importa o que esteja passando.
– Não sinto vontade de escolher nada agora – disse Iran.
– Então escolhe o 3 – ele disse.
– Não vou escolher algo que estimule meu córtex cerebral a ter vontade de escolher! Se eu não quero escolher, não vou escolher nada, porque daí eu vou querer escolher, e querer escolher alguma coisa agora é o impulso mais estranho que eu consigo imaginar; só quero ficar aqui sentada na cama e olhar pro chão.
2. (pg. 102)
Este ensaio vai terminar, a encenação vai terminar, os cantores vão morrer, a última partitura da música será enfim destruída, de um jeito ou de outro. Finalmente, o nome “Mozart” desaparecerá e a Poeira terá vencido.
3. (pg. 172-3)
Inclinando-se, com delicadeza, ele tirou os dedos da mulher dos manetes duplos. Então, ele mesmo assumiu o lugar dela. Pela primeira vez em semanas. Um impulso: não havia planejado isso; de repente tinha acontecido.
Uma paisagem de ervas daninhas o confrontou, uma desolação. O ar cheirava a flores acres; tudo era deserto, e não havia chuva.
Um homem parou diante dele, uma triste luz em seus olhos cansados, banhados de dor.
– Mercer – disse Rick.
– Sou seu amigo – o velho disse. – Mas você precisa continuar como se eu não existisse. Consegue entender isso? – Estendeu as mãos vazias.
– Não – respondeu Rick. – Não entendo isso. Preciso de ajuda.
– Como posso salvá-lo – disse o homem -, se não posso salvar a mim mesmo? – Sorriu. – Você não vê? Não há salvação.
– Então, para que serve isso? – perguntou Rick. – Pra que você serve?
– Para mostrar que você não está sozinho – disse Wilbur Mercer. – Estou aqui com você e sempre estarei. Vá e faça sua tarefa, mesmo que você saiba que é errado.
– Por quê? – perguntou Rick. – Por que eu deveria fazer isso? Vou largar meu emprego e emigrar.
– Você será requisitado a fazer coisas erradas não importa para onde vá – disse o velho. – É a condição básica da vida, ser obrigado a violar a própria identidade. Em algum momento, toda criatura vivente deve fazer isso. É a sombra derradeira, o defeito da criação; é a maldição em curso, a maldição que alimenta toda vida. Em todo lugar do universo.
– É tudo o que pode me dizer? – disse Rick.
Uma pedra zuniu na direção dele; ele se abaixou, mas a pedra o atingiu na orelha. Imediatamente soltou os manetes e se viou outra vez em sua própria sala de estar, ao lado da esposa e da caixa de empatia. A cabeça lhe doía pesadamente por causa da pancada; levando a mão até o local, reparou no sangue fresco a se acumular, escorrendo em grandes e brilhantes gotas pela lateral de seu rosto.
{androides sonham com ovelhas elétricas? philip k. dick. trad. ronaldo bressane. ed. aleph, 2014}
postado em 10 de junho de 2015, categoria excertos : androides sonham com ovelhas elétricas?, ânimo, blade runner, ficção científica, mercer, nihilismo, philip k. dick, poeira, wolfgang amadeus mozart