o gato e o bife

– Mas… deixe-me contar minha piada de gato. É muito curta e simples. Uma anfitriã vai dar um jantar e tem um belo bife de T-bone de três quilos sobre a bancada da cozinha, aguardando para ser preparado enquanto ela estiver conversando com os convidados na sala de estar, tomando alguns drinques e coisas do tipo. Mas então ela pede licença para ir até a cozinha preparar o bife… e ele não está mais lá. E o gato da família está num canto, limpando o rosto tranquilamente.

– O gato pegou o bife – disse Barney.

– Será? Os convidados são chamados, discutem a situação. O bife sumiu, todos os três quilos. Lá está o gato, parecendo bem alimentado e feliz. “Pese o gato”, alguém diz. Já tomaram alguns drinques, parece uma boa ideia. Então, eles vão até o banheiro e pesam o gato na balança. Ela marca exatos três quilos. Todos veem o peso indicado, e um convidado diz: “Pronto, achamos o bife”. Estão satisfeitos, agora sabem o que aconteceu. Têm uma prova empírica. Então, um deles fica apreensivo e diz, confuso: “Mas onde está o gato”?

– Já ouvi essa piada antes – disse Barney. – Ea inda não entendo a aplicação.

Anne disse:

– Essa piada apresenta a essência mais pura já alcançada para o problema da ontologia.

[Philip K. Dick. Os três estigmas de Palmer Eldritch. trad. Ludmila Hashimoto. Aleph, 2022, p. 238]

***

[a piada do gato q pesava o mesmo q o bife q sumiu da cozinha. ao constatarem a igualdade, pesando o gato, disseram: achamos o bife. mas então, onde estaria o gato? “essa piada apresenta a essência mais pura já alcançada para o problema da ontologia”. mas por que? pense no vinho e na hóstia. e no mapa, que não é o território, e no vaso, que não é a ceramista.]


postado em 29 de abril de 2024, categoria citações : , , , ,

masque-z vous

na novela suprema da paranóia, os três estigmas de palmer eldritch, superando até mesmo o homem duplo, do mesmo philip k. dick, a droga chew-z alcança os pícaros da bad trip total ao lançar certos usuários em um espaço-tempo refeito e labiríntico cujas imagens retidas então populam a existência sóbria como efeitos colaterais, tornando igualmente labiríntica a determinação do que é real. afinal, estamos ou não ainda mergulhados no mundo alucinatório proporcionado pela mastigação da substância?

mas se palmer eldritch e sua aparência grotesca, mais os mostruosos glucks, não comparecessem. e se, ao invés de remeter a bifurcações de nossa vida, quando já tomamos uma decisão mas talvez tomássemos a outra, uma outra droga nos transportasse para uma realidade exatamente idêntica à nossa, mas ilusória? e fosse progressivamente difícil distinguir então se algo aconteceu aqui ou ali, da mesma forma que determinar qual das duas é de fato àquela em que há consequências materiais, se é que são apenas duas realidades e se é que existam consequências materiais, ou se essa materialidade não é ideal, efetiva nos n-mundos que são o labirinto do mesmo mundo vivido fenomenológico. fiquei imaginando que esse jogo de indiscerníveis e a confusão resultante nesse cubismo deveria ser contada em primeira pessoa, em um processo gradual de dissolução da confiança na consistência de um real que, entretanto, recusa a sair do banal.


postado em 10 de dezembro de 2021, categoria comentários : , , , ,