o que nos fornece ainda mais uma figura para a dificuldade de, no que concerne ao tema da aproximação entre arte e vida, ter e comer o bolo: não tratamos algo sonhado como de fato ocorrido. adicionalmente, não calçamos um bolo indistinguível à distância de um tênis esportivo (mas nesse caso é duvidoso se tampouco o comeríamos. a graça parece estar em mostrar como ele pode ser indistinguível ao tênis, mesmo sendo um bolo – tê-lo e não comê-lo. posso pensar inclusive que a não-determinação quanto a tratar-se ou não de bolo seja justamente a graça).
às vezes a não determinação quanto a ser ou não arte é como o caso do bolo indiscernível de um tênis, na qual basta cortar o tênis para dispersar qualquer dúvida. (não há grandes vantagens em nos treinar a olhar para objetos como possíveis bolos indiscerníveis deles. bolos bons de comer não precisam desse caráter hipermimético e há até mesmo nele uma suspeita de que o bolo em questão seja medíocre ao paladar, tal como muitos cakes de um vermelho brilhante, muito vistoso).
postado em 27 de fevereiro de 2023, categoria aforismos : bolo, doutorado, indiscerníveis, obra de arte, ter e comer o bolo
O quanto essa indagação [“seria possível algo ser tanto uma obra de arte quanto um objeto não-artístico?”] não se assemelha àquela em que é perguntado se possível ter e comer o bolo? Imaginemos que temos um bolo, uma fatia de bolo, para simplificar, ou melhor, uma torrada, que comeríamos junto ao café produzido tanto para que se tenha um bom café como para que seu filtro de papel, usado, seja apropriado e utilizado para a criação de uma obra de arte visual. Após você consumir a torrada, não haverá mais a torrada. Não havendo mais torrada, você não mais a possuirá. Assim, possuir (ter) e consumir (comer) são excludentes. Se a relação entre obra de arte e contraparte material for definida de modo similarmente excludente, então ser uma coisa implica não ser a outra. A ideia de objetos não-artísticos já indicava isso. Só que eu sou um sujeito um tanto insistente, com uma boa dose de teimosia, e quero explorar esses meandros até extrair daí pensamentos imprevistos. Lembro do clássico Alice Através do Espelho, em que a raínha branca declara que a regra para a geléia é que se tenha ontem e amanhã mas não hoje1. Assim como a geléia da raínha branca, a torrada pode ser retida. Reter a torrada é comê-la, mas apenas amanhã, nunca hoje. A comida mantém sua função, mas a ação que a consolida é postergada indefinidamente. A intenção prévia não se converte em intenção em ação.
Assim elaborado, esse caminho parece introduzir mais confusão do que direção. Reter um objeto como não-artístico seria tratá-lo sob a promessa do artístico mas não usá-lo como objeto cotidiano. Não apenas é estranha a diferenciação entre promessa e efetização quanto a tomar algo como artístico (o que seria isso?), como é estranho que um objeto cotidiano não seja usado quando poderia. Se alguém perguntar porque a torrada, já mofada, não foi jogada fora, seria um tanto estranho dizer “porque vou comê-la amanhã”2. Não faz muito sentido fazer e não comê-la. A não ser que a torrada seja guardada em condições muito específicas, em um ambiente controlado onde ela se mantenha constantemente comestível. Talvez o dono da torrada pense: “algum dia comerei a torrada”. Mas nesse caso a torrada é parte de uma situação inteira, sendo apenas um dos componentes de uma performance que não tem nada de habitual e cotidiana.
[1 “The rule is, jam to-morrow and jam yesterday – but never jam to-day.” (Carroll, 1994, p. 78). A frase responde a um trocadilho possível entre inglês e latim, o que não vem ao caso.]
[2 Exceto que Carolina Deptulski, quando criança, ao receber um conjunto de chocolates coloridos, resolveu guardá-los para os comer em uma ocasião especial. Como ela tinha os chocolates como muito especiais, a ocasião especial à altura acabou não chegando nunca. Quando desistiu de esperar os chocolates já estavam a muito mofados e curiosamente tinham perdido suas cores, todos aparentando um cinza nada convidativo.]
postado em 6 de dezembro de 2021, categoria aforismos : chocolate colorido, contraparte material, lewis carroll, obra de arte, ter e comer o bolo, torrada
diz adorno que se as obras de arte fossem intuitivas, estas seriam, segundo wagner, efeito sem causa. e portanto, ideológicas no mais alto grau.
postado em 29 de outubro de 2019, categoria aforismos : arte, ideologia, intuição, obra de arte, richard wagner, theodor wiesengrund adorno