estou sentado em uma sala

como muitos outros, fiquei completamente fascinado quando escutei i am sitting in a room, tanto pela sonoridade, desenvolvida aos poucos, em processo lento, quanto pelo que estava ali envolvido (uma maneira muito poética de trabalhar musicalmente a ideia de que uma sala tem uma acústica específica). tanto que, quando dava aulas de arte sonora, mas até mesmo de criação e registro sonoro, sempre mostrava aos alunos da oi kabum! essa peça. e em seguida experimentávamos o processo: gravar uma fala ou alguns sons em uma sala. tocar essa gravação na mesma sala e gravá-la de novo. e novamente e assim por diante. presenciar o mistério da filtragem e reforço sucessivo de certas frequências até que a sala parecesse usar nosso estímulo inicial para expressar suas preferências, seu ser sonoro.

esses dias estava pensando sobre como essa música pode de fato ser dita canônica, dentro do âmbito da música experimental. por ser desconhecido no mundo afora, não fui convidado para a comemoração de 90 anos de alvin lucier, em que 90 artistas diferentes executavam a obra em diferentes espaços e condições. mas já tinha construído uma versão, em 2016, pensando em homenagear esse incansável explorador sonoro, falecido hoje (01 de dezembro de 2021).

a ideia era que, dada a força de i am sitting in a room, ligada às versões executadas pelo próprio lucier, haveria em toda sala, agora ligada à sua acústica, um potencial-lucier: o conjunto de frequências articuladas a partir do processo reiterativo de lucier como aspecto virtual para qualquer sala. e de certo modo, isso significava para mim que se filtrássemos a expressão de cada sala, sucessivamente e gradativamente, de toda sua força expressiva, o que sobraria ao final seria a voz do bom velhote.


postado em 1 de dezembro de 2021, categoria comentários, música : , , ,

resquiescat in pace, rufo

como me falta aquela empatia que me tornaria susceptível de enfrentar a morte com calamidade ou tristeza, restam me os pequenos momentos de melancolia, das situações habituais contrariadas. não que a morte em si não seja insólita. o recolhimento e a recusa à alimentação, o resultado que torna a espera e a inação distantes e incongruentes, o endurecimento do corpo, o som das varejeiras que o rondam, o seu peso tornado puramente físico, sem tônus, sem resistência a favor ou contra. tudo isso conta para como que uma suspensão da experiência na experiência. mas daí, justamente, não há propriamente sentimento, entendido como emoção sedimentada.

só que depois os pequenos acontecimentos acumulam: chegar em casa e não ter ninguém a esperar, ou então andar no corredor e não vê-lo deitado ao lado, preguiçosamente; então, não chamá-lo para que siga vagarosamente, com o excesso de prudência característico. devo segurar o olhar, retesar o dedo que estalaria, engolir o nome não proferido. a estranheza de abrir e fechar as portinholas da varanda, na falta da necessidade de demarcar e impedir. a bacia seca que nunca dará mosquitos, os pombos que não visitam a ração não comida que não mais há, e a raiva que deles eu tinha, em mim ameaçando mas tão logo dissolvendo-se ao não achar objeto. a súbita lacuna e a desistência de ler na rede, sem ele a rondar, em sua perturbação indecisa; o chão vazio, limpo, sem esperneios bizarros, interessantes; os lugares mais frescos, deixados aos tatus bola. sobretudo o silêncio noturno, a ausência de roncos, o sono desacompanhado, a escuta a procurar o ritmo ressonante e só encontrar desconfiança, a imaginar seres que preencheriam sua falta.


postado em 15 de fevereiro de 2019, categoria crônicas : , , , , ,

uma gata antes da morte

eu estava em foz do iguaçu, a ministrar uma oficina de edição de som na unila. então, soube depois. leucemia. antes, entretanto, comportamento louco: após anos sem caçar, pega 2 lagartixas e as come, na minha frente, muito magra mas ágil. esconde-se num banheiro úmido. sabendo o tamanho da bronca, dorme 3 vezes em cima das minhas malas, no quarto. urina num recipiente de plástico jogado no jardim. espera secar um pouco; deita-se em cima. faz tempo que não baba. é outra pessoa. ou vê fantasmas da juventude que não conheci. descanse em paz, mel.


postado em 5 de janeiro de 2018, categoria crônicas : , , , , ,

shifgrethor

paulo costa foi colega e coordenador da escola na qual trabalhei (oi kabum! bh); além do suporte e apoio, era um sujeito que entendia meu humor de hora do intervalo, em especial quando se tratava do atroz e do absurdo. como sua audição não era boa e tinha gosto pela disciplina da história, além de entender da roça, éramos suficientemente diferentes para eu conseguir ficar quieto, escutando, sem interromper seus causos. dado seu apreço pelo dizer circular, indireto, e por diversas formas do subentendido, foi numa dessas ocasiões que formulei: mineiros seguem a honra das sombras. de modo que, numa comparação com o clássico de ursula le guin, a mão esquerda da escuridão, paulistas seriam orgoreynianos e mineiros karhidianos.

um dia ele me recomendou ler a parte maldita, de georges bataille:

Os seres que nós somos não estão dados de uma vez por todas: surgem propostos a um crescimento de seus recursos de energia. Na maior parte do tempo, fazem desse crescimento, para além da simples subsistência, sua finalidade e sua razão de ser. Mas, nessa subordinação ao crescimento, o ser dado perde sua autonomia, subordina-se ao que será no futuro, devido ao aumento de seus recursos. O crescimento, na verdade, deve se situar em relação ao instante em que ele se resolverá em puro dispêndio. Essa, porém, é precisamente a passagem difícil. Com efeito, a consciência a isso se opõe, no sentido de que ela busca apreender algum objeto de aquisição, alguma coisa,  e não o nada do puro dispêndio. A questão é chegar ao momento em que a consciência deixará de ser consciência de alguma coisa. Em outros termos, adquirir consciência do sentido decisivo de um instante em que o crescimento (a aquisição de alguma coisa) se resolverá em dispêndio é exatamente a consciência de si, ou seja, uma consciência que não tem mais nada como objeto.

{autêntica, trad. júlio castañon guimarães, p. 166}

em seguida, lembro de ter argumentado (talvez a única pessoa na época, para mim), quando da eleição na qual dilma concorria ao segundo turno, que se ela ganhasse a instabilidade política seria o equivalente daquilo que de fato foi, tempos depois. tentei convencê-lo a se interessar pelo livro de le guin. emprestei-o e insisti que ele deveria ler, não pela ficção científica, mas pelo valor da elucidação política. devolveu-me meses depois, após pedir mais um tempo “para tentar de novo a leitura”. uma vez disse: um educador nunca desiste (o seu trabalho é nunca desistir); mas sabia que desistir era, dependendo do contexto, parte do processo.


postado em 15 de dezembro de 2016, categoria comentários : , , , , , , , , , , ,