religião x crença
a religião é o campo em que se insiste muito na fé, por que? é que fé e crença não são sinônimos. lembrando de descartes, pensem nisso: quando aprendo que um triângulo tem três lados e 2 + 2 são 4, adquiro a crença de que seja assim. e o faço porque não existe em mim nenhum modo contra-causal que possa decidir no que eu deva acreditar, de modo a levar-me a uma crença diferente, nesses casos. impossível um triângulo de 4 lados, ou que seus três ângulos não resultem dois perpendiculares. já em outros, quando não há razões suficientes para se decidir por algo, deveremos lembrar que a liberdade pela indiferença é o nível mais baixo desta. poderíamos indagar o motivo. é que aquele que não usa sua capacidade racional de modo produtivo, com a certeza que deus lhe proveu de poder decidir por razões, finalmente se deixa levar pelo que lhe é confuso, abandona a inclinação ao luminoso para ser navegado pela escuridão. e a indiferença, o domínio da livre escolha, provém justamente alimento a esse lúgubre movimento. o que nos preocuparia deveras, pois levaria à descrença. entretanto, é possível direcionar nosso pensar, através de exercícios e experimentos mentais, e estabelecendo regras provisórias aqui e ali, de modo a podermos ver com mais clareza aquilo que era antes confuso, ou que suspeitávamos cheio de obscuridade. se assim fizermos, conquistaremos a liberdade no cultivo e manutenção da clareira do racional.
mas e no caso da fé? seu mecanismo doxástico não seria aquele justamente envolvendo a falta de crença em algum nível, a gerar crenças confusas em outro? e essas não seriam fatalmente acompanhadas por ainda outras crenças auxiliares não declaradas, subterrâneas, a se infiltrarem sem fundamento e a lançarem trevas sobre o edifício da ação? se é verdade que deus não nos quis enganar, então por que nos inculcaria misteriosos ensinamentos obscuros? ensinamentos que, na categoria do obscuro aceitável, a fé, ainda assim, pela vontade, que é infinita, se expandiriam muito além do que podem. fé que, ligando-se à esfera do poder, a potencializar a confusão e obscuridade, interfeririam no que a liberdade alcançaria, até que seja preciso reter os ensinamentos d’o mundo, e dar inúmeras voltas a dizer que a terra move-se sem mover-se, nos turbilhões do espaço. lembremos das boas regras e direcionemos o espírito. é preciso que cada coisa fique no seu lugar. a religião organiza a falta de crença: esse é seu espaço. ou assim talvez pensasse secretamente o filósofo, de máscara no teatro do mundo.
postado em 3 de junho de 2020, categoria comentários : crença, doxástica, fé, fideísmo, filosofia, rené descartes