a dificuldade com o escovar os dentes
escovar os dentes não é apenas esfregar de um lado a outro um creme dentro da boca, enxaguar e expelir o composto. dizem os odontologistas, antes melhor seria gentilmente torcionar as cerdas, com um movimento levemente escavatório do pulso. quanto as pastas, muito se discute. há quem argumente que pela observada correlação entre a fluorificação da água e a diminuição de problemas dentários, não há porque insistir ainda mais em uma substância ambígua como o fluor, nas pastas – sua função já foi cumprida.
uma certa vez no banheiro, em casa, escova suiça e dentifrício inglês, em frente ao rosto e de repente há, em volta das cerdas laranjas, uma pequenina formiga. como ela foi parar aí? retiro-a gentilmente, colocando a na pia. já à noite, uma e depois outra formiguinha. retiro-as, inquieto. paro e olho. forço os olhos, nada. mas ao desistir, vejo mais uma. saiu de dentro da escova? não quero formigas nos meus dentes. pressiono as cerdas com o dedão, como quem vira um flip book; quero descobrir o que há dentro. desisto, ainda que desconfiado.
dia seguinte e antes de escovar cerro mais uma vez os olhos: agora vejo (será mesmo que vejo?) formigas ainda menores nas cerdas laranjas, pequenos pontos preto-translúcidos, movendo-se. como num sonho, onde aceito com conformismo o que me angustia, coloco a pasta. pode ser que elas queiram a pasta, são formiguinhas que anseiam pasta de dentes, e esta não tem fluor. a água, que talvez tenha fluor, as afasta. são sensíveis. mas o dentifrício, este não. só que agora vendo, não são bem formigas que saem de dentro da pasta, mas pequenas larvas, cuja quase-coloração tende mais ao branco. certo nojo, mas está explicado: as larvas perdem-se nas cerdas, as formigas vão até lá e ficam caçando-as, no mar laranja. branco e preto, caça e caçador, pasta e escova. a solução é simples. com o dedo e água, pressionar levemente cada dente e depois a gengiva e a língua, rotacionando o antebraço graciosamente. então, bochechar vigorosamente, sentindo a resistência de músculos pouco acionados, jogando de um lado a outro o bochecho e terminando com um gorgoleio barulhento e orgulhoso. ah, as maravilhas do enxaguamento bucal. quem nunca esqueceu a necessaire em uma viagem à praia. e no mar, diferentemente da piscina, não há adição controlada de cloro (se bem que, já que estamos aqui a comparar, devo dizer que a água do mar perde em muito para a das cachoeiras e que ambas não são cloradas; a das cachoeiras reviroga; a do mar não).
não obstante, três dias depois, cansado da duplicidade do toque, polpa do dedo e dente, compro uma outra escova e outra pasta, sem melhora no resultado. nem me presto a pensar o quão inflacionados andam os produtos importados, que deve haver sobretaxação em algum lugar ali. quando há puro desperdício é melhor nem perder tempo com computações que, no todo, só devem aumentar a irritação. e que raios de situação, estariam os depósitos de produtos contaminados? pego o telefone, vou primeiro perguntar aos amigos. talvez um e-mail, geral em cc: “ajuda: caso do dentifrício”. mas será? o telefone é mais seguro – vai que estou a enlouquecer.
abandono o aparelho, entretanto. pois vejo cair nele as pequenas linhas ondulantes brancas. só podem ter saído de minha boca. por todo esse tempo, seria então isso, eu, um larvário bucal? um castigo pela força aplicada quando da escovação – de alguma forma, concussões abrindo caminho às infecção dessas estranhas minhocas? teriam os zigue-zagues da raspagem preparado, contra as convoluções normalmente recomendadas, um terreno propício a essa estranha situação? “pelo menos minha gengiva não está se automascando”, penso. preciso de cloro. se minha boca virar uma piscina…
(pensando bem, sempre achei o fluor um tanto suspeito. seria o flúor uma entidade coletiva alienígena em processo de dessimbiose?)
postado em 1 de novembro de 2018, categoria histórias : escovação, flúor, infecção, insetos, larvas, pasta de dente