passei 8 anos construindo uma música. ficou melhor, mais impressionante, mais satisfatória que outras? não. é verdade que é possível que o tempo transpareça, quem sabe. mas ficar dois dias ou mais de 500 horas fazendo algo pode não estar correlacionado com quesitos de qualidade, porque esses quesitos são estabelecidos em relação à consistência própria do construído. o período de trabalho e a perseverança estabelecem paralelos, não muito mais que isso. uma vez, quando estudante, demorei 13 meses para fazer uma música eletroacústica que, após primeira audição, guardei para nunca mais tocar. então a questão seria muito mais se vale a pena fazer o tipo de música que demora meses ou anos para ser feita, sendo sua qualidade, tal como em outros tipos, incerta.
gosto muito dessa fase do parmegiani, mas não encontro muitas informações sobre. pode ter sido influenciado pelas colagens situacionistas. entretanto, ambas as peças foram estreadas apenas em 1969: a primeira, uma “collage” para a “exposition des musiques expérimentales/GRM, maison de radio france”; a segunda, uma “suite du film Je, tu, elles”, de Peter Foldés, criada na universidade de southampton (no reino unido). portanto, não aparentam ter relação com maio de 68, por exemplo.
Por Henrique Iwao. Realizada na sede 1 do Ibrasotope, São Paulo, 28 de março de 2012, 21h.
Improviso em Branco e Preto (carta às videntes), 2004
Qual o critério para escolha do material? Todo ele advém de gravações?
Existem dois momentos, relativamente sutis, que são de sínteses, mas a maior parte do material vem de gravações. De modo similar ao que acontece em O Chá, o material provém de gravações que se faziam presentes na minha coleção de Cds. Entretanto, diferentemente da peça supracitada, o material aqui passou por uma seleção bastante criteriosa.
É mesmo?
As fontes principais são de dois tipos: solos de bateria de bandas de rock; e excertos de percussão de música contemporânea. A partir desses dois tipos de material eu trabalhei com a suposição de que os excertos escolhidos de bandas de rock contêm uma gestualidade e tipos de articulação bastante próximos, mas com características sonoras advindas de escolhas timbrísticas e processos de gravação que as tornam bastante individualizadas.
Uma anotação que eu tenho aqui da época diz o seguinte: ”[Gesto padronizado versus timbres individuais; ênfase na preocupação com som (seguida pela preocupação com a realização virtuosística da performance); performance voltada à demonstração de domínio em determinados padrões realizados de modo altamente energético com grande velocidade].”
E essas características das bandas de rock se contrapõem ao que ocorre no âmbito da “percussão contemporânea”, nas quais os tipos de articulação e gestualidade são bastante diversos, mas não está presente, por exemplo, a preocupação com os tipos de gravação ou o que isso influencia na característica sonora da obra.
Nessa peça buscou-se a manutenção de um nível de energia bastante alto durante sua maior parte – exceto os momentos de síntese, mais ou menos -, e isso foi determinante para a escolha dos trechos que entraram na peça. Ou seja, são matérias que advêm de momentos com uma atividade bastante alta, em que as pessoas tocam um monte de coisa.
Tem outra coisa. O solo dos bateristas de rock são majoritariamente no estilo “discos de guitarrista”.
O que isso quer dizer?
Rock instrumental com um milhão de notas por segundo. Nos meus arquivos, consta que usei as seguintes músicas:
Reynold Carlson (Joey Tafolla: Out of the Sun)
Richard Christy (Death: The Sound of Perseverance)
Anders Johansson (Rolf Munkes: No more Obscurity)
Scott Travis (Racer X: Live Extreme Volume)
Scott Travis (Judas Priest: Painkiller)
Deen Castronovo (Marty Friedman: Dragon’s Kiss)
Marcel Cardoso (Diablerie: The Breach of the Masquerade)
Gerald Kloos (Rolf Munkes: No more Obscurity)
Mike Portnoy (Dream Theater: Awake)
Mike Terrana (Mike Terrana: Shadows of the past)
São coisas que você escutava?
São coisas que tinham na minha coleção de discos. As músicas contemporâneas utilizados foram:
Karlheinz Stockhausen: Gruppen (Orquestra Filarmônica de Berlim, Claudio Abbado)
Bruno Maderna: Hyperion (Asko Ensemble, Peter Eotvos)
Marc Monnet: Le Cirque (Armand Angster)
Allain Gaussain: Chakra (Quarteto Arditti)
Ah, eu imaginava que era isso mesmo (quanto às músicas contemporâneas; as músicas de rock eu desconheço). Eu ouvia seus CDs. Naquela época não era tão fácil achar essas coisas. Só não lembro do Gaussain…
Agora, eu queria saber se, afora questões mencionadas de escolha, existe alguma outra que se relaciona com essa primeira de “fazer uma música usando os CDs disponíveis, com trechos de percussão”? Por que pegar CDs da sua coleção, que envolvem percussão, e fazer uma música?
Ok. Estamos no início do ano de 2004; eu estava começando a fazer coisas no computador, com eletrônica, etc. Até esse momento eu tinha feito uma única peça, Nec Spe Nec Metu, que é feita somente utilizando síntese. Se eu me lembro bem, eu tinha vontade de trabalhar com outras coisas, mas essa vontade era restringida por outros fatores, tais como, por exemplo, a falta de um local para trabalho caso eu quisesse gravar coisas. Tive uma experiência frustrada com isso, no estúdio na Unicamp, nessa época.
A falta de intérpretes para tocar música escrita, que eu fazia bastante na época – elas tinham que ficar na gaveta. Então eu me vi na situação de fazer com o material que eu tivesse à disposição. Nesse momento não existe uma razão ideológica para trabalhar com os CDs, era uma questão de possibilidade mesmo, de realização da música. E se eu tinha vontade de trabalhar um material como esse, era muito mais fácil recorrer ao que estava na mão do que lidar com uma outra situação que envolveria a cooptação de pessoas e convencimento, e que me parecia muito mais estressante e menos recompensadora musicalmente.
Quando você em fala material como esse, isso significa que você já tinha em mente uma obra a ser feita ou um material a ser trabalhado?
Nesse caso, evidentemente, sim. Como seria a articulação de um excerto para outro, sim. Na medida que eu comecei a composição da peça ficou razoavelmente clara a ideia formal.
Mas a composição de uma peça eletroacústica implica em certas coisas, certas especificidades…
No momento que eu comecei a compor, a ligação com as gravações, as diferenças de timbre se pronunciaram e isso se mostrou importante. Eu procurava similaridades gestuais e de como isso poderia se relacionar com uma peça do Xenakis, que é o que ocorre numa espécie de clímax da peça, nos 4’54-5, na qual existe uma fusão de timbres de rock e de percussão contemporânea. Pelo que me lembro foi uma das primeiras coisas que fiz nessa peça.
A ideia da colagem, de usar trechos de peças, já existia antes desse contato com as gravações?
Eu poderia pensar uma peça para percussão que teria características gestuais similares a essa peça, mas que deveria levar em consideração outros aspectos. Mas a situação prática não me permitia nem pensar nessa alternativa, se eu quisesse uma realização sonora da peça, a curto prazo.
E sobre as transições entre cada excerto?
Isso é uma coisa que ficou bastante informal nessa peça, até o meio dela especialmente. Eu ia encadeando trechos que tivessem alguma característica que permitisse encadeamento. Até o meio ela tem de fato essa característica de improviso, uma coisa segue a outra e eu tento fazer com que aquilo tenha sentido. Ou seja, entre um gesto similar ou uma articulação, às vezes, tem um pequeno ralentando, é tudo caso a caso.
Na segunda metade, depois do trecho tecno, tem umas coisas que são determinadas por interferências – joguinhos composicionais. E a outra que tinha também eram os acordes orquestrais pesados que articulavam alguns momentos de transição entre fragmentos.
Do Maderna…
Maderna, Stockhausen, Kurtag e Xenakis, eu acho.
E no trecho tecno existe algum tipo de, de certa forma, clímax; ele é um momento que se destaca. Pelo próprio fato de você chamar de tecno, há uma referência?
Na verdade meu interesse musical em relação à música tecno e de pista em geral é quase nulo. Eu suponho que esse trecho tenha um tanto a ver com uma peça que Bernardo fez na época, Frankfurt, Frankfurt. Mas era algo subjetivo, uma brincadeira, uma pequena resposta, uma outra possibilidade.
Um outro nome desse trecho tecno pra mim é trecho matriz1. Especialmente quando entram os acordes de Stockhausen.
E, assim, de modo algum eu vejo como um clímax da peça. Ele é uma espécie de intruso.
Intruso como uma dança no meio do Concerto para Violino de Mozart, o concerto.
Isso.
Há um contraste claro nesse trecho. Os ritmos periódicos, pulsantes, e finalmente os acordes. Antes, estes acordes só pontuavam. Poderia ser lido como um comentário acerca de um encontro de Stockhausen e os Tecnocratas?
A questão era puramente do material musical mesmo. Não tem nada a ver com esse artigo2.
Algum motivo especial para os acordes de Gruppen?
Os acordes que articulavam a primeira parte da peça eram mais ou menos similares a isso aí, em termo de instrumentos e sonoridade.
Certo. Uma última pergunta. Pelo que conversamos e pelo que conheço de ti, são dois períodos de escuta, o Rock que você ouvia antes, principalmente quando adolescente e a música contemporânea, a qual você se dedicou depois. Na peça, há uma tentativa, bem sucedida ao meu ver, de juntá-los, de um modo que valorize ambos. Como isso se deu?
(pausa longa) Não sei. Não sei responder a essa questão.
***
Vermelho (2008)
Em Vermelho temos, de material retirado de outras fontes, 66 excertos de bandas de música de metal violento do mal, metal do capeta. Diferentemente da outra peça, esses 66 trechos foram coisas que baixei da internet só para isso mesmo; não faziam parte de coisas que eu ouvia ou da minha coleção de discos.
A outra coisa principal são diversas versões da Internacional, nove versões iniciais que são depois misturadas, via phase vocoder (da Internacional em albanês com a em chinês, que gera uma coisa “sino-albanesa”). Uma terceira coisa relevante nessa peça é que a estrutura dela é derivada de um aspecto formal de outra peça, Il Canto Sospeso, de Luigi Nono.
Por que a estrutura?
Porque Nono é talvez o exemplo mais recorrente de compositor assumida e engajadamente comunista.
E isso se liga ao conceito, “Vermelho”?
Exato.
Pode falar sobre isso?
Provavelmente de um ponto de vista simbólico, o vermelho nessa peça se associa mais enfaticamente a comunismo e sangue.
Por que utiliza-lo como símbolo para isso?
Não tem porquê. Na minha cabeça é isso.
Qual a relação do tema com a dança?
Foi a Melina que disse que chama Vermelho; a relação é nenhuma e elas ficaram duas semanas debatendo o que era vermelho para a dança. Mas, no meu método de trabalho com a Melina na época, isso era absolutamente desconsiderável – elas iam fazer uma coisa e eu ia fazer outra. Essas duas coisas seriam eventualmente juntadas. Aí tinha essa temática: “vermelho” e em algum momento foi sugerido que eu pensasse em coisas que eu associasse à cor vermelha. Para mim são essas duas coisas que foram ditas.
Foi como um ponto de partida?
Foi um ponto de partida para a formulação da estrutura da peça, cujas proporções são derivadas da série do Nono, para a escolha desses dois tipos de material.
E sangue tem a ver com o número 66?
Sangue tem a ver com canções como Ritual dos Depravados, Sangue Nórdico, Automutilação, ou Portador do Terror; Campos de Devastação, Assassino Serial, Necrófago.
Sim, mas a temática dessas canções me parece bastante associável ao diabo, numerologicamente ligado ao número 666 e derivações.
Sim, tem.
Esta peça tem basicamente mais dois tipos de material. Coisas sintetizadas e trechos de uma peça minha que é anterior e/ou posterior, que é Fragmentos de Vermelho. Fragmentos de Vermelho é uma peça composta por 30 micropeças, cada uma com uma duração algo entre 0.5 e 2 segundos.
Também uma trilha para dança na qual Juliana França pediu “uma música com trinta músicas de um segundo cada”.
Como você usa como material? Deixa claro as referências?
Os 66 excertos de metal barulhento são ultrafragmentados e recebem diversos tipos de tratamento sonoro: distorção, equalização, modulação em anel, outros tipos de modulação, etc. A duração deles é em geral bastante curta, sendo que o menor tipo tem 17mm de segundo, entre 17ms e 0.5s. Seis deles foram escolhidos como excertos referenciais e são um pouco mais longos. O mais longo deles com duração de 18s, ou seja, estes seis são passíveis de identificação. Os outros, me parece impossível. Esses trechos são das bandas mais famosas: Burzum, Deicide, Marduk, Emperor, Dark Throne, Ulver. E aí foram elaboradas sequências desses fragmentos, relacionados à série do Nono.
O segundo tipo de material, que são trechos de Fragmentos de Vermelho tratados com extensão temporal, ou seja, aquelas coisas que duram um ou dois segundos foram expandidas para coisas como um minuto. Na Internacional tem os vocoders.
A organização da peça é toda baseada em uma estrutura do Nono, que respeita os quatro tipos de material, mas as organizações são derivadas de um tratamento serial. Essa peça é bastante estrutural, bastante formal, as coisas são usadas de acordo com o que foi pré-definido pelo pensamento estrutural.
Me lembra Hymnen, sempre me lembrou.
Certamente eu ouvi o Hymnen, mas eu não analisei, não tenho especial apreço. Mas no rascunho da peça tem escrito: “Controle de densidade e ‘serialismo'”, que são coisas que estão bastante presentes, creio que em Hymnen. Outra coisa anotada em concepções é “poliparametrização”.
Em Stockhausen tem todo um discurso sobre a utilização dos hinos.
É. Mas não, na minha não tem nada disso aí.
[fim da entrevista, Mário está cansado e quer ir, já estou ocupando muito de seu tempo!]
1Referência ao filme Matrix (1999), dos irmãos Wachowski; mais especificamente à trilha sonora, de Don Davis, que figuraria “acordes similares” ao d clímax de Gruppen, de Stockhausen.
2Referência a Stockhausen, Karlheinz et al. “Stockhausen Vs. the ‘Technocrats”. Publicado na antologia Audio Culture: Readings in Modern Music; COX, C.; WARNER, D. (Eds). Nova York: Continuum, 2004. p. 381-385.
assista aqui. [mas um daqueles vídeos que estavam e não estão mais no youtube]
documentário de eric darmon e franck mallet, 2006.
“a música concreta versa sobre a arte da escolha. é a arte da escolha. você escolhe um som depois de outro, e assim a composição começa.”
“eu senti a necessidade de revisitar uma obra clássica do meu próprio modo. foi nessa época que eu escolhi/resolvi escrever a décima sinfonia, inspirado pelas nonas sinfonias de beethoven. o que me importava eram os aspectos analíticos e musicológicos. eu criei um dicionário de sons ‘Beethovenianos’. // a décima remix é uma obra sobre a vida, eu penso. há a praia, a guerra, há os barulhos da cidade, as pessoas trabalhando. é um trabalho sobre a vida, como um filme. um super-documentário. uma visão do mundo que eu não conheço mas que eu imaginei.”
ministrada por leigh landy, na eca/usp, programa de pós-graduação em música, setembro de 2011. nesse curso, tivemos como tarefa diária preparar uma composição para o dia seguinte, além de uma para a semana inteira.
2011-09-20: vida e arte, relações entre música e a vida cotidiana. coletânea editada dos microshows juiz de fora (a serem postados em: microshows).
2011-09-21: something to hold on to – música que ofereça algo para que o ouvinte se apoie, durante a escuta. nesse caso, o nome: bola de ping pong e peões; atentem ao reconhecimento dessas duas fontes sonoras.
2011-09-22: para um público específico. no caso, os fans do álbum thriller do michael jackson. não coloco por ser parte das minhas coleções de áudio, que eu não disponibilizo para ninguém.
2011-09-23: para ser apresentada em um meio específico. deve-se ouvir essa peça em fones de ouvido, para ter a sensação dos espaços absolutamente não realísticos (isso não funciona direito se tocado em caixas de som).
2011-09-24: trabalho final do curso, música comunicativa. as coisas caem quando eu empurro, a gravidade ajuda, com a queda há sons, mas com o cair há a expectativa de som (é possível que eu não entenda bem essa questão do “comunicativo”).