o apito de cachorro e a falsa sirene

a política do apito de cachorro envolveria mensagens cifradas em meio a discursos políticos, direcionadas a um subgrupo de apoiadores, mas que, em termos literais, não daria suficiente elementos ao público em geral para que dali se conclua da mensagem geral a mensagem específica. o dog-whistle produz um som ultra-sônico, isto é, um som sem som, aos humanos – as vibrações estão acima daquelas captáveis por nós. poderíamos, entretanto, grava-las e tocar seu conteúdo a uma velocidade de reprodução menor, fazendo com que o seu âmbito frequencial decrescesse, e escutássemos o chamado. se o processo for lento, entretanto, seremos surpreendidos pelos cães raivosos ou melindrosos, que obedientemente ou desdenhosamente, atendem ao sinal. mas mesmo preparados, ainda teremos de enfrentar o argumento: “trata-se de coincidência. não há nada (literal) em x que permita atribuir y (implícito). nós temos de nos ater à linguagem”. como se a linguagem só tivesse superfície.

na combinação com a mangueira de incêndio da falsidade, entretanto, uma nova forma é obtida. não se trata mais de encontrar as equivalências que traduzem um discurso no outro, acessando assim as segundas intenções ditas, mas não explicitadas – aquelas enterradas abaixo da primeira camada de significados. como não há comprometimento com consistência nessa mutação, o apito pode muito bem ser substituído por um berrante, cujo som é não só audível, mas escancarado, ou bem melhor, porque se procuram touros descontrolados e não vacas ruminantes, por uma sirene. que essa sirene seja de plástico vagabundo e pintada de verde e amarelo toscamente é proposital: quem levaria a sério o chamado de uma sirene dessas, tão ridículo? de modo que a mensagem é agora explícita, mas contextualizada como uma brincadeira, um desabafo, um xingamento ou outro modo que deveria desqualifica-la de prontidão. na operação, é importante dizer x ao mesmo tempo em que se desautoriza outros a tomarem x como significativo. alguns saberão que é preciso relevar o contexto e tomar x como mote de ação; para o resto, basta dizer que há um equívoco. que é preciso atentar não ao significado literal, mas o que aquilo expressa naquele contexto: descontentamento, jocosidade, descontrole emocional, desejo pessoal. que o emissor desminta e logo em seguida inverta os sinais do chamado só contribuem para o efeito. há valores que se prestam à ação; as inversões não são simétricas. girar a manivela ao contrário pode de fato produzir o mesmo som. mas se a intenção é gerar silêncio, por que não ficar quieto? é o caso quando as inversões são sensos comuns. a idiotia de um código que apenas inutiliza o não deve ser levada a sério. a falsa sirene não é apenas a versão incompetente do apito de cachorro.


postado em 23 de outubro de 2018, categoria comentários : , , , , , , ,

pós-verdade

esse conceito, que soa como pseudo-pós-mordenismo – fake pos-mo – só pode querer indicar que hoje, quando temos mais acesso a fontes e meios de verificação, somos pós-enganados; então, antigamente, éramos verdadeiramente enganados.

enquanto acreditávamos que fatos e decisões coincidiam, olhávamos para o fato errado (a verdade), ao invés de olhar para o fato que nos seria supostamente interessante olhar (a enganação). de modo que, ao pesquisar por resumos rápidos sobre técnicas de manipulação e retórica, entendemos melhor como funciona a opinião pública. a dificuldade é que, dito isso, nada muda.

 


postado em 19 de fevereiro de 2017, categoria comentários : , , , , , , ,

o cínico

é tal que pode desistir de um jogo ou argumentação e ir para outro a hora que lhe for apropriado, sem empecilho algum (como não há empatia, o constrangimento do interlocutor não é uma questão). assim, seu discurso não precisa assomar-se como algo coerente. ele só precisa ser ponto a ponto conveniente. tal é a virtude do cínico: a impermeabilidade (as palavras deslizam).


postado em 6 de maio de 2016, categoria aforismos : , ,