ovelhas eletrônicas

esqueça blade runner, androides sonham com ovelhas eletrônicas.

1. (pg. 16-8)

– Minha programação de hoje aponta uma depressão autoacusatória de seis horas – disse Iran.

– Quê? Pra que você vai escolher isso? – Aquilo desafiava todo o propósito do sintetizador de ânimo. – Nem sabia que você podia escolher algo assim – disse, sorumbático.

-Uma tarde, eu estava sentada aqui e naturalmente liguei no Buster Gente Fina e Seus Amigos Gente Boa, e ele estava falando sobre uma notícia importante que estava prestes a divulgar, só que aí veio uma propaganda horrível, que eu odeio; você sabe qual é, aquela do Protetor Genital de Chumbo Mountibank. Daí, por um minuto eu desliguei o som. Então ouvi o prédio, este prédio; aquele som de… – e ela fez um gesto vago.

-Apartamentos vazios – disse Rick. Às vezes ele os ouvia à noite, quando deveria estar dormindo. Nessa época, um prédio de condaptos ocupado só pela metade podia ganhar uma alta classificação no sistema de densidade demográfica; lá onde, antes da guerra, ficavam os condomínios residenciais, era possível encontrar prédios totalmente vazios… pelo menos, era o que ele tinha ouvido falar. Ele havia se mantido alheio à informação; como a maioria das pessoas, não se interessou em ir lá conferir por conta própria.

-Nessa hora – Iran disse -, quando tirei o som da TV, eu estava no estado de espírito 382; tinha acabado de escolher. Assim, embora ouvisse o vazio intelectualmente, não conseguia senti-lo. Minha primeira reação foi de gratidão por nós termos podido comprar um sintetizador Penfield. Só que aí senti como isso era doentio, perceber a ausência de vida, não só no prédio, mas em tudo, e não reagir a nada, percebe? Não, acho que você não entende. É que isso passou a ser considerado uma indicação de doença mental; chamam-na de “ausência de afeto adequado”. Então deixei o som desligado e fiquei testando o sintetizador de ânimo até que finalmente descobri um ajuste para desilusão. – Seu rosto grave e petulante se mostrou satisfeito, como se ela tivesse descoberto algo importante. – Por isso eu programo esse sentimento duas vezes por mês; acho que é um tempo razoável para me sentir desiludida em relação a tudo, em relação a ter ficado na Terra depois que todo mundo, a ralé, emigrou. Concorda?

-Mas um estado de espírito desses – disse Rick – pode fazer com que você fique nele, em vez de selecionar outro. Uma desilusão como essa, a respeito da realidade total, se autoperpetua.

-Programo um reajuste automático para três horas depois – sua mulher disse, insinuante. – Um 481. Percepção de múltiplas possibilidades abertas pra mim no futuro; uma nova esperança que…

-Conheço bem o 481 – ele interrompeu. Tinha escolhido essa combinação várias vezes; confiava bastante nela. – Escuta – disse, se sentando em sua cama e puxando as mãos dela para que ficasse ao seu lado: – Mesmo com uma interrupção automática, é perigoso mergulhar numa depressão, de qualquer tipo. Esquece o que você programou e eu vou esquecer o que eu programei; vamos os dois digitar um 104 e ter essa experiência juntos, e aí você continua nesse estado de espírito enquanto eu troco o meu por minha atitude profissional de costume. Assim eu vou querer dar um pulo no terraço, checar a ovelha e depois ir pro escritório; nesse meio-tempo, vou saber que você não ficou aqui mofando com a TV desligada. – Ele soltou os dedos finos e longos dela, passeou pelo espaçoso apartamento até a sala de estar, que ainda exalava um cheiro suave dos cigarros da noite anterior. Então ligou a TV. Ouviu a voz de Iran vir lá de sua cama.

– Não suporto TV antes do café da manhã.

– Escolhe o 888 – disse  Rick enquanto a válvula da TV esquentava. – Vontade de assistir TV, não importa o que esteja passando.

– Não sinto vontade de escolher nada agora – disse Iran.

– Então escolhe o 3 – ele disse.

– Não vou escolher algo que estimule meu córtex cerebral a ter vontade de escolher! Se eu não quero escolher, não vou escolher nada, porque daí eu vou querer escolher, e querer escolher alguma coisa agora é o impulso mais estranho que eu consigo imaginar; só quero ficar aqui sentada na cama e olhar pro chão.

2. (pg. 102)

Este ensaio vai terminar, a encenação vai terminar, os cantores vão morrer, a última partitura da música será enfim destruída, de um jeito ou de outro. Finalmente, o nome “Mozart” desaparecerá e a Poeira terá vencido.

3. (pg. 172-3)

Inclinando-se, com delicadeza, ele tirou os dedos da mulher dos manetes duplos. Então, ele mesmo assumiu o lugar dela. Pela primeira vez em semanas. Um impulso: não havia planejado isso; de repente tinha acontecido.

Uma paisagem de ervas daninhas o confrontou, uma desolação. O ar cheirava a flores acres; tudo era deserto, e não havia chuva.

Um homem parou diante dele, uma triste luz em seus olhos cansados, banhados de dor.

– Mercer – disse Rick.

– Sou seu amigo – o velho disse. – Mas você precisa continuar como se eu não existisse. Consegue entender isso? – Estendeu as mãos vazias.

– Não – respondeu Rick. – Não entendo isso. Preciso de ajuda.

– Como posso salvá-lo – disse o homem -, se não posso salvar a mim mesmo? – Sorriu. – Você não vê? Não há salvação.

– Então, para que serve isso? – perguntou Rick. – Pra que você serve?

– Para mostrar que você não está sozinho – disse Wilbur Mercer. – Estou aqui com você e sempre estarei. Vá e faça sua tarefa, mesmo que você saiba que é errado.

– Por quê? – perguntou Rick. – Por que eu deveria fazer isso? Vou largar meu emprego e emigrar.

– Você será requisitado a fazer coisas erradas não importa para onde vá – disse o velho. – É a condição básica da vida, ser obrigado a violar a própria identidade. Em algum momento, toda criatura vivente deve fazer isso. É a sombra derradeira, o defeito da criação; é a maldição em curso, a maldição que alimenta toda vida. Em todo lugar do universo.

– É tudo o que pode me dizer? – disse Rick.

Uma pedra zuniu na direção dele; ele se abaixou, mas a pedra o atingiu na orelha. Imediatamente soltou os manetes e se viou outra vez em sua própria sala de estar, ao lado da esposa e da caixa de empatia. A cabeça lhe doía pesadamente por causa da pancada; levando a mão até o local, reparou no sangue fresco a se acumular, escorrendo em grandes e brilhantes gotas pela lateral de seu rosto.

{androides sonham com ovelhas elétricas? philip k. dick. trad. ronaldo bressane. ed. aleph, 2014}


postado em 10 de junho de 2015, categoria excertos : , , , , , , , ,

watashi wa watashi

“eu sou eu” – essa frase repetida como bordão, como resposta existencial. qual o estranho fascínio de neon genesis evangelion e guilty crown pelo existencialismo? (vou deixar o estranho fascínio pela família psicanalítica de lado, por não me interessar tanto). essência, caráter, projeto, destino, existência. watashi wa watashi. tenho a capacidade de escolher ser aquele que toma suas ações para si; aquele que, em face do mundo, escolhe ser responsável por suas próprias ações. não há ilusão nisso – se é uma máscara ou uma casca, se o eu é uma miragem, o modo de vida que a afirmação trás, seu tom trágico, é real. shinji e shu. nem ayanami rei nem yuzuriha inori são simplesmente clones, ferramentas, monstros, construções. a existência acaba as humanizando. transumanismo desconstruído. na borda do sonho demasiado humano da tábula rasa, sonho que resultaria enfim em um inumanismo generalizado, a descoberta do humano através das mulheres-ciborgues. essa figura do amor japonês.

*

e até que ponto gc, de 2011, não é uma retomada do nge, de 1995? e para dar outro exemplo, a relação entre tima e kenichi, em metrópoles de osamu tezuka. todas as 3 personagens femininas são muito mais interessantes do que o par deckard e rachel, de blade runner. i can’t stop loving you.


postado em 27 de março de 2015, categoria comentários : , , , , , , , , , , , , , , , , , ,