Para Giacinto Scelsi, Uma Entrevista com Jean-Pierre Caron

Por Henrique Iwao, 09 de abril de 2012. Realizada através de sistema de conversa via internet, com Iwao em São Paulo e Caron em Paris.

Olá Jean-Pierre. Estou interessado em conversar com você sobre sua obra Momentum I (para Giacinto Scelsi II). A versão que tomo como referência é a redução estéreo, de 2011, disponibilizada no endereço http://soundcloud.com/j-p-caron/momentum-i-for-giacinto-scelsi (incrustrada logo acima desse parágrafo). Mas esta peça foi composta antes, não?

Sim, foi composta bem antes. Conheceu várias versões. Esta que está disponibilizada no meu soundcloud é apenas a sua forma atual. A última que foi produzida, em Agosto de 2011. A primeira, se me lembro bem, é de 2008. E foi apresentada pela primeira vez em um concerto solo que fiz no Ibrasotope1 em Novembro daquele ano. Se eu não estiver enganado. E era bem, bem mais longa.

Sério? Não me lembro disso.

Meu programa em 2008 consistiu em Momentum, que se chamava somente para Giacinto Scelsi II; e Curtos Circuitos I, que toquei na edícula da casa/sede. Eu quis incluir Harmonic Fields Forever, mas na época o piano não ficava na sala. Meu plano incluía projetar o vídeo2, replicando os movimentos do mesmo; mas o piano, ficando na edícula – ia ficar difícil de implementar a ideia, e desisti. Eu pretendia usar esse vídeo e tocar por cima a parte de piano, e talvez convidar o Mário para tocar guitarra.

Pena que não deu certo. Voltando a Momentum, você pode falar um pouco sobre a peça? O que te motivou?

Várias coisas. Mas acho que o que mais chama a atenção a partir do título é a relação com a obra de Scelsi, certo? Eu tinha feito uma dissertação de mestrado em música na Unirio, antes de ir para a filosofia, na qual abordava tempo e espaço musicais a partir de obras de Scelsi e La Monte Young. Sempre fui muito sensível a este tema do Tempo musical, desde a primeira obra que considero importante das que eu fiz, justamente, Curtos Circuitos I.

Sim. Uma concepção expandida do Tempo musical, um tempo que se esgarça.

Sim, mas não somente isso. Na dissertação eu abordava vários tipos de tempos. Entretanto, é fato que o chamado “Tempo vertical” era muito interessante para mim, por não compreender direito como ele funcionava. Como podia ocorrer um tempo não evolutivo, como que parado, contradizendo aquilo que parecia ser a essência do tempo: a sucessão de eventos?

Isso que você chama de “Tempo vertical”, esse tempo não evolutivo?

Sim. Tempo vertical é uma categoria elaborada pelo Jonathan Kramer, em seu livro “The Time of Music”, que eu estudei no tempo daquela dissertação. Hoje tenho inúmeras críticas a esse trabalho, mas continuo achando útil esse termo “Tempo vertical” para denotar certas experiências de tempo.

E qual a relação deste Tempo para com a obra de Scelsi, na sua concepção?

Sim, essa era a pergunta da dissertação.

Você pode resumi-la?

Ela começava apresentando concepções de tempo teoricamente, também havia uma parte sobre espaço, dividia em “pansonoridade”- o sistema do Wyschnegradsky; e “monotonia” ou “afinação justa”- o sistema colocado em circulação no sec. XX por Harry Partch. E na segunda parte eu analisava propostas de dois compositores, Scelsi e Young, tentando articular esses tempos e espaços nessas análises.

O interesse aqui é saber a relação desta concepção de tempo com o fato de você ter homenageado, de certa forma, Scelsi em duas das suas obras.

Sim. O que eu percebi na dissertação foi justamente que a categoria de Tempo Vertical não era adequada à obra de Scelsi, apesar de a mesma não se submeter facilmente a uma análise teleológica. E, para entender isso, fazia-se necessário um estudo das características espaciais das obras de Scelsi.

Em Momentum escuto claramente um direcionamento, um começo, meio e fim.

Sim, há claramente um direcionamento. E isso acontece muito em Scelsi. O que acontece na obra dele são dois fatores: espaço sonoro reduzido – como o nível de mudanças é mais estreito; digo o espaço onde elas ocorrem, isso gera impressão de stasis temporal. E a falta de sinalizadores, como o Paulo Dantas chama, ou de indexicais, como eu chamo: momentos de ruptura na forma que indiquem pontos estáveis de referência em uma evolução.

Mas ao mesmo tempo, essa stasis era ilusória, e havia uma evolução contínua. Ela apenas era dificilmente apreendida de momento a momento. É um tipo de forma cuja evolução fica clara depois que ela acabou.

Ela traça arcos, trajetórias.

Sim.

Mas, por vezes, são trajetos pequenos, ou cheios de pequenas curvas internas.

Sim. Por vezes há mesmo muita movimentação, mas pelo espaço ser estreito tem-se a impressão de uma interioridade sendo revelada em vez dos largos intervalos encontrados na música serial, por exemplo. Essas características me fizeram gerar uma série de obras-comentários, nas quais procurei testar estes elementos de diversas maneiras. A primeira dessas obras foi 8′ para Giacinto Scelsi, que seria Para Giacinto Scelsi I.

Você pode falar muito brevemente dessa peça, para situa-la em relação à outra?

Sim. Esta peça cruza duas preocupações minhas, que são a obra aberta – ainda que se conteste essa noção, posso tomá-la como um termo que abarque uma temática que eu trabalho – e o tempo-espaço musical. A partitura é formada, literalmente, por linhas trajetórias desenhadas dentro de espaços delimitados. A ideia é que cada músico associe uma das linhas propostas a um parâmetro musical. Altura e dinâmica são obrigatórias. O restante é à escolha dos músicos.

Para a leitura das alturas, há alguns critérios pré-compostos: cada espaço de leitura das linhas não ultrapassa o intervalo de dois tons – um acima e um abaixo de um ponto central. Ou seja, o resultado que se tem é uma obra inteiramente composta de glissandi, mas desenvolvidos em espaços muito estreitos de um tom acima ou abaixo da nota. A minha ideia era recriar as texturas da música de Scelsi em um dispositivo que gerasse vários resultados sonoros. Uma maquininha de gerar espaços-tempos scelsianos.

Momentum tem um aspecto importante para mim, nessa relação intermusical com a obra de Scelsi. Parece que essa noção de interioridade se relaciona com um dimensionamento da escuta. Redimensionar a escuta para que a percepção trabalhe em intervalos menores no âmbito das frequências, e em um tipo de duração onde a continuidade é priorizada e a ruptura colocada em segundo plano.

Sim, isso é muito importante e está presente também em 8′ para Giacinto Scelsi.

Você acha que nas suas homenagens esta estratégia de mudar o âmbito musical faz com que a percepção, a escuta, mude de âmbito também? Primeiro: como isso se dá na primeira homenagem?

Eu acho que sim. Não teria argumentos científicos para comprovar isto.

[risos] Não estou pedindo isso, de modo algum!

Mas, por experiência, a escuta destas obras muito reducionistas ocasiona um redimensionamento da percepção; coisas muito pequenas ficam muito grandes.

Muito grandes para a percepção.

E, inversamente, em ambientes de muita movimentação, coisas grandes ficam menores. Um efeito “Alice”3. [risos]

No vocabulário mais cotidiano, uma mudança de ponto de vista.

Sim.

Algo análogo a isso, ao menos.

Uma mudança de aspecto. Existe, ainda, uma terceira obra, ou dispositivo, juntamente com as duas homenagens admitidas a Scelsi.

Certo, mas vamos focar nelas, por enquanto. Logo mais comentamos a outra.

Sim. Mas para focar em Momentum vou precisar comentar 8².

Então, na primeira homenagem, há essa estratégia de diminuição de âmbito de parâmetros musicais deixados ao livre arbítrio, dentro de certas regras, para os instrumentistas. E em Momentum? Qual a estratégia?

Momentum é uma peça acusmática em sua forma atual. Ou seja, ela é gravada em suporte e difundida por alto-falantes. Não há interpretação, no sentido de performance musical. O que ocorreu, para expor um pouco a cadeia de pensamentos que me fez chegar a ela, foi que eu havia feito 8′ para Scelsi e ela era uma obra bastante curta, com seus oito minutos indicados no título. A hipótese que me acometeu foi: se eu multiplicar todos os tempos da obra, será que isso geraria uma qualidade de tempo diferente? O que eu procurava era a resposta negativa, na medida em que a ausência de indexicais destruiria a sensação de tempo diferente gerada por uma multiplicação das estruturas.

A ideia que eu tinha era de fazer isso literalmente, na medida do possível.

‪Não entendi muito. Você esperava que, multiplicando o tempo, dado o aspecto contínuo da obra, ela continuasse com o mesmo sentido de continuidade?

Sim.

E o que seria essa multiplicação?

Seria um processo de time-stretch [expansão temporal]. Na época comecei a pesquisar as possibilidades técnicas de realizar isto.E eu estava tendo aulas na UFRJ com o Rodolfo Caesar. Durante uma aula mencionei o projeto a ele, e ele me deu um patch [programa computacional] que ele havia feito no Csound para, um time-stretch também. No caso dele, de uma obra de Bach. Disse que eu o utilizasse no meu projeto, e foi o que eu fiz.

Fuga III de Bach/Busoni/Caesar?

Exato. Claro que estudei o a programação do Rodolfo e adaptei para as minhas necessidades. O que se ouve em 8² e em Momentum, apesar de saído do mesmo esqueleto, da mesma armação, não são os mesmos valores. Bem, preciso esclarecer o que é 8².

8² é a obra resultante da aplicação do time-stretch a 8′.

Deixando-a 8 vezes mais lenta.

Exato. Eu quis aplicar o procedimento literalmente e dei um título literal. Ela foi estreou no Ibrasotope também, no Festival do final de 2008, como instalação.

O título indica uma coisa curiosa, ao meu ver: que a preocupação principal das duas era a percepção do “passar do tempo”. Só com o título da primeira eu não faria essa relação. A segunda peça, com essa brincadeira com a multiplicação do tempo (82), diz no título exatamente para prestarmos atenção na passagem do tempo. E então é como se aqueles intervalos mais restritos da primeira fossem de alguma forma relacionados com uma mudança da apreensão do Tempo. Isto é, não só um redimensionamento da percepção para âmbitos menores. Enfim, tinha esta impressão. Se puder formular melhor que eu, agradeço.

Sim, eu entendo o que você quer dizer. Eu acho que o índice “²” mostra a passagem do tempo. Porque, em 8′, o que “8” diz? Uma fatia temporal espacializada. “Você vai ouvir um pedaço de 8 minutos”. Na segunda obra, em vez de chamar de 64 minutos, o que seria a mesma operação, eu chamei de 8², explicitando que havia uma transformação de uma outra coisa. Que era uma fatia de 8 minutos originalmente.

E que a base de comparação era o “passar do tempo”. E aí temos de escutar de novo a 8′ sob uma nova luz, comparando as temporalidades. É muito bem bolado o fato do título conter o conceito.

Sim. No final das contas não existe 8² enquanto obra. Estas “obras” não possuem existência substancial. São procedimentos. 8′ para Giacinto Sscelsi é um procedimento para gerar uma performance, e 8² é um procedimento a ser aplicado sobre performances de 8′ para Giacinto Scelsi. Ou seja, não existe UMA 8².

Tenho pensado nesta categoria de obras como obras-dispositivos. É um dispositivo, no sentido de algo que se conjuga a algo fazendo algo. Eu posso gerar tantas 8² quanto eu quiser, inclusive não obedecendo à proporcionalidade do título.

Qual foi sua conclusão sobre essa comparação de temporalidades musicais?

Eu acho que eu confirmei a minha hipótese, para a minha escuta. Há variações grandes entre 8′ e 8², mas nenhuma para mim se traduz como mudança de natureza do tempo. Dentro do que poderia ser uma “tipologia do tempo e do espaço musicais”, estas duas obras estariam na mesma categoria. Apesar de todas as transformações timbrísticas, de densidade, entre elas.

Ou seja, sua categoria teórica se confirmou na sua experiência?

Não posso ir tão longe, porque acho as categorias falhas, por outras razões. Mas a hipótese empírica sim, para os meus ouvidos se confirmou. Eu ainda acho essa hipótese um tanto teórica, mas isso é apenas uma querela teórica. Acho melhor não entrarmos nisso.

Quero dizer, não é importante se a categoria “Tempo vertical” se sustenta ou não como categoria teórica. O que era importante era verificar se havia mudança de categoria entre as duas dimensões representadas nas obras… (É, eu fui guiado por perspectivas muito teóricas).

Entendi. E como isso desemboca em Momentum?

Em Momentum existe uma diferença muito grande em relação às obras anteriores. A operação foi muito simples: eu apenas pensei em, em vez de aplicar o time-stretch a um produto que eu tivesse produzido, por que não aplicá-lo diretamente a uma obra de Scelsi? Mas escolhi para tanto, intencionalmente, um sample inicial muito direcional. Com todas as características que elenquei anteriormente, mas no qual existia de fato uma mudança de estado entre o momento inicial e o momento final do sample.

‪Um indexical?

Não tanto indexicais, os indexicais da peça foram criados por mim. Por meio de corte e cola de outros fragmentos não passados pelo time-stretch. O que ilustra também esta indiferença de escalas temporais dependendo do material de base. Os momentos não ampliados se inserem de forma bastante contínua nos momentos ampliados. Mas existe uma diferença de timbre que acho que pode se converter num idexical, num sinalizador.

Eu indentifico vários momentos que servem como referências para localizar temporalmente a escuta, durante a obra, mesmo que o movimento como um todo seja um contínuo, em geral.

Sim, estas foram acrescentadas ao processo depois do time-stretch efetivado. Na versão inical de 2008, se me lembro bem, não havia estes sinalizadores. Era liso. Mas tinha um claro direcionamento.

Era mais liso, de fato.

Sim, isto sempre esteve presente, por conta do sample original, que foi escolhido com estas propriedades de direcionalidade, dramaticidade, clímax. O título revela esta vontade. Momentum como falso cognato de “momento” e também como impulso. Essa duplicidade temporal de algo lento, que demora pra mudar. Ao mesmo tempo está sempre mudando. Além de brincar com a tendência de se colocar nomes em latim em obras eletroacústicas. [risos]

‪Começa pianíssimo e rarefeito, adensa, cresce em intensidade, se esvai e aí sobra algo de diferente, um som mais leve, advindo provavelmente de um solo. É um arco, mas bastante pronunciado.

Por incrível que pareça eu me lembro da análise de Tender is the Night, creio que do Deleuze / Guattari4.

Do Fitzgerald?

Isso. Ele fala de microrrupturas5. As coisas vão mudando lentamente. Mas quando vem a percepção da mudança, ela pode se dar de forma a gerar um momento, algum indexical. Provavelmente gera essa tendência; no caso da novela, alguns acontecimentos entre o casal, que vai aos poucos se juntando e se separando.

Sim. Brilhante, bem como a vida.

É um livro impressionante, o Tender is the Night6. É curioso eu fazer a relação disso com o final da sua peça, mas é uma relação vaga.

Claro. O que ocorre, vamos contar, para quem não conhece, é que existe um processo contínuo bem simples de crescendo. E, paralelamente, existem outros processos. Existe uma compressão que vai alterando o timbre em dois dos canais, tornando-os mais ruidosos. E existe um glissando de um synth dx 100 super grave que se mistura gradualmente ao som das cordas em time-stretch, um glissando ascendente. O ponto máximo desse glissando coincide com o ponto superior da peça, no sentido da condução de vozes. O Paulo [Dantas] sabe exatamente a nota que é. Eu, que compus, não sei. Pergunte a ele depois. [risos]

E no final é como se a maquina quebrasse. Existe um som mais grave, com muita movimentação interna, e muito intenso, que termina em um ataque que abre um outro mundo: o som do quarteto de cordas não processado, nos últimos minutos da peça. É interessante pensar no paradoxo de o quarteto não processado soar mais micro do que o som esgarçado por conta de uma associação com as dinâmicas. O quarteto aparece muito baixinho, como uma lembrança, apenas, em fade out.

O final é um quarteto?

Sim. Não digo qual, mas é um quarteto. Prêmio para quem descobrir!

Essas inserções, a não ser as sintetizadas, são de obras de Scelsi? Todas?

Sim, são de obras orquestrais. Fora as coisas que eu mesmo produzi com síntese.

E o final não tem time-strecth então?

Não, tem só depois do último ataque brutal. Os últimos segundos não têm time-stretch.

‪Curioso!

Mas foi uma colagem, mais uma. Eu fui sobrepondo outros trechos, ao longo da peça, à camada esgarçada, movido por coincidências harmônicas e de trajetórias. O espaço no qual estas intervenções aparecem também é sempre diferente.

Mantendo a forma pré-dada pela amostra utilizada?

Mais ou menos. A versão de 2008 mantinha integralmente; em 2009 apresentei a peça já com o título de Momentum, no Encun de Minas Gerais. Nesta versão já tinha feito um corte na amostra original e refeito o procedimento.

Entendi, então o título indica essa mudança de concepção mesmo, reforçando e brincando com passagens em que era possível traçar essas referências.

SIm, eu assumo a direcionalidade com o título. Aliás, apresentei no Ibrasotope na semana seguinte esta mesma versão. Ainda não morava com vocês. Fui de Minas Gerais para São Paulo direto apresentá-la em um dos concertos mensais. Existiu ainda uma versão intermediária, apresentada no RIo de Janeiro em 2009 antes do Encun. Mas durava 18 minutos, contra os 14 da versão atual. E a versão do Ibrasotope em 2008 durava mais de 25, se não me engano.

Certo. Então teve alguma hora que você mudou a concepção da peça?

Sim, acho que sim.

Na primeira versão você procurou comparar a sua obra com a de Scelsi como um experimento? Assim como 8′ e 8²?

Sim. A primeira versão era também uma aplicação literal de um procedimento. Depois assumi a existência de Momentum como obra fixa. Neste sentido acho-a bastante diferente de 8′ e 8². Momentum existe com aqueles sons, naquela ordem.

Mas e a relação desse time-stretch para com a obra original?

Ele não era fixo como em 8². Os valores mudavam ao longo da leitura da amostra. A quantidade de novas amostras produzidas não era fixa, de tal forma que a taxa de ampliação, por assim dizer, é variada.

Você procurou comparar a percepção das temporalidades?

Sim. Momentum está mais próxima de temporalidades de outras obras minhas, como a citada Curtos Circuitos I, nas quais há direcionalidade e clímax. Porém chega-se lá bem lentamente. Isto exige uma paciência do ouvinte e do intérprete, que entende que algo está por vir mas que precisa esperar até que este algo chegue.

Mais do que da obra de Scelsi?

Não sei se há mais, mas para a minha escuta, esta lentificação potencializa a dramaticidade. E é como se os processos temporais ultrapassassem o que o ouvido normal considera cômodo.

Certo, o que eu queria sublinhar é a passagem entre o experimento de 8² e Momentum. Você usar esse tipo de procedimento, já modificado, em cima de algo pré-formado de uma gravação de obra do Scelsi…

Sim, a amostra foi escolhida para isto.

Por exemplo, a obra de Caesar lida com essa mudança de velocidade; mas lá claramente há a vontade de mudar de perspectiva, o que se escuta, de evidenciar timbres, e os espaços sonoros que se mostram à percepção através de nuances de timbre e fase sonora.

Sim, os critérios que orientam a obra do Rodolfo são bem diferentes dos meus. Embora evidentemente a minha obra possua influência do que ele realizou.

Então, houve alguma estratégia mais clara, relacionada a um possível comentário sobre a produção musical de Scelsi?

Não, não houve. Foi menos intelectual do que as duas obras anteriores. O que houve foi: esse cara chega a um clímax em x minutos. E se eu pegar esse processo e fazer um processo bem maior e chegar nesse clímax em bem mais tempo?

A pergunta é diferente, no sentido de que eu de saída estava lidando com direção, mas orientado pela vontade de gerar intensidade. Existe aí uma relação com minha prática Noise, no -notyesus>.

Sim. E houve alguma pergunta do tipo: “por que usar a música desse cara como base”?

Sim, porque era um material que me agradava e que eu achava que ficaria bom. Só por isso.

Eu tenho uma ideia um pouco diferente dessa motivação. [risos]

Diga então qual é a sua ideia.

Eu sempre achei que você via no Scelsi, através dessa obra, um precursor do gênero Noise.

Sim, você está certo. Mas não foi muito consciente. Acho que a minha resposta é mais verdadeira pelo seguinte: eu gosto de Scelsi e gosto de Noise. Usei algo que eu gostava. E, fatalmente, à medida que a obra avança, ela sai de texturas bem artificiais, estilo eletroacústico, para texturas orquestrais, para sons muito saturados no final, encontrando-se sim com uma prática noise. O sinal nos canais com compressor fica absolutamente clipado no final. Eu abaixei depois, para mixar com os canais sem compressor. Esse é o tipo de coisa que eu e Sarpa fazemos no -notyesus>, usar coisas erradas como efeito timbrístico. E é muito típico de uma prática Noise, embora não exclusivamente.

O bacana é que, mesmo que inconscientemente, passa algo de também reavaliar a obra do Scelsi como algo passível de estar mais próxima das músicas Noise. Para mim, ao menos.

E quando o título mudou, o que exatamente foi feito, você lembra de um exemplo que ilustre essa mudança?

Sim, eu fiz o primeiro corte na duração da peça no intuito de tornar a forma aerodinâmica. Cheguei a 18 minutos, apresentei assim na Unirio, no Plano B, em Agosto de 2009, época em que apresentei também o Ícone, nos mesmos eventos, com os músicos do Ensemble Agora: Sarpa, Paulo e Marcos Campello. Cortei mais na manhã do concerto em Minas gerais, cheguei a 14 minutos. Eu queria chegar sem atrito ao clímax. Cortei alguns sinalizadores para acrescentar outros. Ela foi ficando cada vez mais com a forma de um crescendo. E aquele quarteto, que gerou toda aquela massa sonora e todas aquelas comunicações entre gêneros musicais, aparece a descoberto, em fade out.

Gostaria de terminar com uma pergunta a mais. Você falou em perceber a temporalidade e em lidar com o tempo, com o esgarçamento do tempo, com a criação de uma espera. Você conseguiria dizer um pouco o que para você é essa percepção de temporalidade, quando você escuta? Para a sua experiência, dá para colocar em algumas palavras? Ou é mais um tipo específico de sentimento?

Sim, sou movido por sensações nesse quesito. É um pouco difícil dizer o que é. Acho que lida com problemas muito difíceis de inadequação da linguagem à experiência. Não sei o que dizer a respeito.

Certo! Bom, foi um prazer.

Igualmente.

 

Notas

1Núcleo de música experimental; contou com uma sede em São Paulo em que foram realizados diversos eventos e concertos, entre dezembro de 2007 e abril de 2012.

2O vídeo referido, realizado por Bruno Agra, pode ser visto em , acessado em abril de 2012.

3Referência ao episódio de “Alice no País das Maravilhas”, romance de Lewis Carroll, em que Alice se depara com um vidro com a mensagem “beba-me” e com um bolo com a mensagem “coma-me”.

4A referência é, na verdade, ao tópico Segunda Novela: “The Crack Up”, Fitzgerald, 1936 (tr. fr. Gallimard), do capítulo 8 do livro “Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia”, de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Esse tópico, entretanto, não analisa Tender is the Night.

5Deleuze e Guattari falam de microfissuras e fissuras, por um lado, e de rupturas, por outro. Microrupturas refere-se a microfissuras.

6Em português, Suave É a Noite, escrito em 1934, por F. Scott Fitzgerald.

 


postado em 19 de maio de 2012, categoria Uncategorized : , , , ,
  1. Grace Torres disse às 0:00 em 30 de novembro de -0001:

    Que maravilha de conversa! Obrigada!