esse ano começou muito bem, em dezembro de 2023, com uma viagem incrível com família e esposa para ubatuba (praia brava de fortaleza), com direito a quase bater a cara em uma raia no parque estadual da ilha de anchieta. logo que voltei à campinas, entretanto, derrubei água quente em minha mão, ao fazer café. mesmo assim, fui à botucatu, joguei futebol com os primos e entrei em regime de engorda. quando voltamos para belo horizonte, nossos novos vizinhos do andar de baixo resolveram impedir-nos de usar o quintal e aplicar em nós doses cavalares de individualismo antipático.
sofremos, mas aos poucos fomos acostumando. em algum momento eu e carol começamos a jogar tênis de mesa, entendendo como é melindroso, o que talvez aumente a necessidade de dominar o básico. continuei com a peladinha de domingo e a secretariar o grupo de estudos de filosofia da música. lemos adorno sobre beethoven e discutimos um pouco sobre isso com daniel arelli; conversamos sobre dissonância e iniciamos a leitura de the time of music, do kramer.
retomei meu blogue e minha veia blogueira, mesmo que 35% das minhas 31 postagens tenham vindo de rascunhos antigos. explico: eu tinha cerca de 250 postagens não publicadas; vasculhei todas em busca de material relevante. fui selecionando e re-escrevendo, chegando a 75 textos. publiquei sobre a movimentação de extrema direita por mais impostos e menos pão, sobre quantos sucos diferentes tomaríamos na cantina da física, na época da faculdade, sobre artistas doidinhos e unidades monetárias; disponibilizei uma coletânea de vinhetas e minha teoria do pão de queijo; também, uma defesa incompleta do uso do termo música experimental, mais gravações que fiz de moscas na casa antiga no esplanada. por algum motivo estranho, não tinha publicado o necrológio para o músico zbigniew karkowski, influente na nossa cena, anos atrás. também havia um poema perdido, sobre repetições exatas.
quanto a conteúdo novo, escrevi umas crônicas. vivenciei uma morte no uai e a galera da copiadora evitando pensar. não lembro exatamente porque, mas consolidei minha crítica à arte da performance (que na verdade é uma crítica contra a maneira como fazemos registros de performances). não foi muito, mas também, estudar para concursos é desgastante (mais sobre isso adiante).
melhor anime que vi foi provavelmente arcane 2, apesar do esquema narrativo convoluto utilizado para fechar a bagunceira da história; destaque também para dandadan e seu ritmo adolesc frenético. não lembro de tantos filmes, exceto o interessante retrato de toritama, a capital brasileira do jeans, em estou me guardando para quando o carnaval chegar; como sempre, adorei o que trond reinholdtsen lançou em seu canal – to arms! to arms! é uma ópera incrível. na bienal itinerante (re)vi o samba do criolo doido, do luiz de abreu. continua impactante. vimos um monte de séries, destaque pra xogum e sua trama de intriga política samurai.
fiquei fascinado com os covers rock indie de the shaggs, que soam tanto como shaggs desentortados, como indie entortados, o que me inspirou a fazer um vídeo simplório, ao piano. também tive paixonite pelo the grid, do tigran e tirei 85% da peça (enrolo no solo, erro na baladinha). tivemos bons álbuns lançados no ano, mas vou me contentar em apenas recomendar meus destaques feitos a partir de listas de final de ano de outrem: o superlesbianismo de colinho, da maria beraldo, o entrosamento artrópode de KNÆKKET SMIL, de maria bertel & nina garcia, o lirismo no-wave de if i don’t make it, i love u, de still house plants e pop chique da mabe fratti em sentir que no sabes. via andreyev, fiquei sabendo da versão do sheeran dos estudos microtonais do blackwood, e recomendo, mesmo não sendo dessa categoria (destaques de 2024).
eu mesmo lancei dois bons álbuns, pela seminal records: without the beatles, com mário del nunzio, resgatando um projeto de 2007! por lá, criamos músicas para piano, livremente inspiradas em canções dos beatles. contei um pouco sobre e dei uma entrevista no supertônica, para o arrigo barnabé. senti toda a nostalgia enquanto fazia um vídeo-clipe. já em dezembro, também com del nunzio, mas contando adicionalmente com= matthias koole, finalmente soltamos um álbum de nosso trio, infinito menos – três-tríade-triângulo-trio, que acabou com uma capa bem mineira, apesar de eu ser o único integrante a viver no estado.
li vários livros, como sempre, e muitos deles no áudio-livro, todos com sua devida resenha publicada. como isso se consolidou, a gramática de ler foi atualizada (incluindo algo que antes eu chamava de ouvir). consumi inúmeros volumes, em japonês, do homem do soco único (onepunch-man) e destaco os volumes 26, 21 e 10; terminei a incompleta guerra dos tronos (tudo é excelente, incluindo livros 3 e 5, mas excluindo o livro 4, que ficou como um entremeio sem grandes acontecimentos). finalmente ataquei o cem anos de solidão, que encanta pela prosa atropelada das confusões terceiro-mundistas. walter me emprestou o uzumaki, do junji ito e vale a pena, pela bizarrice geômetra onirodínica, embora com soluções simples, episódicas. na poesia, finalmente consegui comprar um teste de resistores, da marília garcia. não decepcionou, apesar de ser muitíssimo ‘elite cultural carioca’. sound within sound, da kate molleson, foi o melhor livro pra descobrir música interessante que li em muito tempo. na filosofia, theory of the gimmick, da sianne ngai, foi o achado, renovação da filosofia crítica e um mix de marxismo antenado ao atual, na estética.
finalmente publiquei um livro. eu já estava para fazê-lo, desde a pandemia, mas o conteúdo foi inesperado. é que yuri bruscky argumentou contra a coletânea de textos curtos (por motivos orçamentários, principalmente) e sugeriu algo menor. fuçando nas minhas coisas, tive a feliz surpresa de entender que minhas partituras texto e jogos musicais de juventude eram legais. publiquei prosódia musical, jogos, etc pelo estranhas ocupações. imprimi umas cartinhas de improvisação, fiz uns lançamentos, e dei uma entrevista no tropofonia, do cesco napoli. foi bom também que revisitei minhas cartas de improvisação, fazendo um show memorável (para mim, ao menos) com inés terra e mário del nunzio. para os lançamentos, toquei com pessoal de belo horizonte (pretti-aiseó, no faísca), juiz de fora (com o difluência) e finalmente rio de janeiro (nesta ocasião, um revival, com alves-campello-sarpa). usei com orgulho o nome antigo de henrique iwao e a incrível máquina de ei você não pode fazer isso. em 2025 quero continuar vendendo e divulgando o livro – que talvez possa ser usado também em contexto de pedagogia musical.
falando em shows, fizemos uma temporada das quartas de improviso (às quintas?) na impressões de minas, descobrindo mais uma parceria instigante. mantivemos o praça 6, desta vez conseguindo, com um gerador à gasolina, filmar dois bliztkrieg noise, com a flávia goa no bar do orlando e marcus neves na lagoa da pampulha. procurei tocar mais vezes com mário e quando possível, com o infinito menos. em uma dessas, esbarrei na teta e no mesmo dia, invoquei o princípio da amizade. em um boteco ruído, fui além, invocando a máxima do reino do caos.
toquei também em curitiba, em um desconcerto organizado pelo branda. é que, desempregado (situação que infelizmente, ainda perdura), comecei a fazer uns concursos e o da unespar, por lá, parecia excelente. infelizmente não fui esperto o suficiente para não ser sacaneado. as profecias sempre estarão certas – e quem é otário o será. de todo modo tentei também um substituto na unicamp, desisti de um em brasília, zerei um na ufmg e tive dois pós-docs recusados (o do cnpq com um parecer equivocado e uma resposta negligente). de resto, fui bem recebido quanto à minha produção acadêmica: dei uma entrevista sobre meu doutorado para o caio souto e tive a tese indicada para os prêmios da anpof e cnpq. apresentei algo sobre ordens alfabéticas e algo sobre públicos revoltados; publiquei sobre o mundo da arte e micropausas, participei de uma banca, fiz uns pareceres para artigos e mandei faixa para um dossiê de poéticas sonoras, que incluiu uma homenagem para a cássia siqueira, falecida em meados de agosto. mandei também outro texto em inglês, sem antes resmungar do prazo anunciado – 31 de dezembro. nesse finalzinho, miguel javaral escreveu sobre minhas colagens em o som como parasita da palavra. disse ele que nas colagens musicais, muitas vezes estou a explorar a fenda entre som e linguagem. achei bacana (e pertinente).
ao escrever esse remendo-caos aqui, fiquei pensando o que estaria a explorar. claro, repassar o ano é importante – saber o que fiz, que há produtividade na existência e que isso pode ser bom. mas pensei o seguinte – uma internet sem hiperlinks é um lugar banal e chato.
quando cheguei à aula de aikido, disse ao mestre ivan: “não aguentarei a aula inteira. não me esforçarei muito. não pretendo me desenvolver mais do que o mero básico. não irei à exames de faixa”. ele olhou para mim como se não houvesse ouvido direito e perguntou se eu já tinha um kimono.
de tempos em tempos ele trocava duas ou três palavras comigo sobre ir para a amarela. fiquei eternamente na branca. é claro que, por um lado, declarar tais intenções fere os desejos de qualquer mestre. por outro, é importante exercer alguma atividade em que não se almeja mais que a mediocridade. especialmente para aqueles movidos pela angústia e arroubos de motivação. deixar isso claro deve ajudar a conter as expectativas do mestre; mas não apenas. ajuda a apaziguar as contradições internas.
2. finalmente o material didático fora entregue e a professora então tem algo muito importante a comunicar aos alunos. ela diz: tenho uma surpresa para vocês! é algo que estávamos esperando e que vocês vão gostar muito. algo muito maravilhoso. um dos alunos pergunta: professora, é queijo?
uma coisa entretanto, me fez pensar: o exemplo enxertado do bartleby. bom, o que representa o bartlebly, aquela personagem que diz i rather not (eu prefiro não), do melville?
o bartebly que não faz nada gera artigos e livros inteiros: deleuze e agamben, mais todos artigos de comentadores (no congresso que fui tinha pelo menos um, e muitos artistas que eu conheço se inspiram nele para produzir obras). pra mim ele representa o mundo encantado do outro, daquele que contrariamente ao escritor, ao pensador, ao artista, não está produzindo. ele é para mim a representação da idealização da não-produção. e é uma maneira de assim expurgar a não-produção e usá-la para combater a má consciência por produzir tanto.
quando lyotard, no inumano, fala de melancolia, ele está já falando também, na década de 80, de uma resignação, de viver no grande hotel abismo [como adorno, um workaholic], e articula esse problema: escrevo isso como poesia-filosofia, mas ao escrever, não posso estar melancólico, posso apenas assumir essa posição de aceitar mal a boa maneira de se expressar, aceitar melancolicamente – isto é, sem me engajar contra minha própria produtividade.
1. como mário havia perguntado sobre si, quem era, entre outras coisas, e o bot havia respondido com um monte de baboseiras, embelezadas com lorotas, eu coloquei na minha cabeça que gpt era uma abreviação de gepetto e que, tal como o pinocchio, aquele chat mentia muito.
2. quando carol me informou que estava rolando uma modinha nas redes de pov, por algum motivo eu achei que se trataria de uma tendência videográfica de filmagem em primeira pessoa – person observation view. mas isso não era de modo algum o que eu encontrara, pouco tempo depois. talvez todos pontos de vistas sejam subjetivos, mas não subjetivas.
era um prazo que se apresentava como absurdo para nós. um prazo final ainda para esse ano. um prazo de final de ano, verdadeiramente. um prazo cuja data era 31 de dezembro.
(o prazo em si não parecia absurdo, mas sim a data. trabalhos possuirem prazos é algo da ordem do aceitável. alguma hora o fruto do trabalho deve amadurecer. marcamos uma data para nos impedirmos de postergar esse amadurecimento indefinidamente).
é que o ano vai aos poucos terminando. e nesse processo, a soma das expectativas de que termine aumenta. os dias acumulam e o final se aproxima. o acúmulo de expectativas então contagia. torna-se impossível não levá-lo em conta. torna-se impossível realizar qualquer tarefa produtiva sem levar esse acúmulo em conta.
(trabalhar levando em conta a expectativa de que o ano acabe é extenuante. se ela o é para aqueles que anseiam cada vez mais pela pausa, fadigados que estão de tanto trabalhar, ela também o é para aqueles que, desocupados, se veem contagiados por essa ânsia)
acontece que o que terminaria com o ano não seria apenas o ano, mas também o prazo. e o prazo indicaria que haveria algo a fazer: trabalho.
(resultado: estenderam o prazo para 15 de janeiro).
1. ultimamente tem estado muito em voga dizer que música experimental é um termo guarda-chuva, mas que não é um gênero, e que na verdade, por suas origens (schaeffer na frança, experimentalistas nos eua), é algo que se tornou incômodo como denominação.
2. aí há pressupostos. creio poder organiza-los em dois blocos. (i) que é ruim fazer coisas que caem num gênero. que cair num gênero é ser encaixado, tornar-se produto reificado. que o que não se encaixa, é aberto e livre, é emancipado. (ii) que usar um termo com uma origem implica uma filiação. que essa filiação é mais negativa que positiva. que filiar-se é algo que subalternos fazem.
3. gostaria de apontar como é ruim pressupor que a ideia de gênero é negativa, mas vou começar criticando a ideia que pertencer a um gênero é algo negativo. como se então a absoluta maioria das músicas do mundo fossem de um escalão inferior e que só uma posição vanguardista de risco e abertura do anti-genérico pudesse erguer-se acima da indústria cultural.
4. ser enquadrado parece ser uma operação que encaixota e assim restringe e diminui. mas ser enquadrado é uma operação de categorização, a categorização identificada como ideologicamente negativa. categorizar algo em um gênero é localizar aquela prática dentro de um contexto estético-social e guiar as pessoas a ambientes específicos, no qual elas possam efetivamente navegar – encontrar cenas, traçar discursos.
5. zappa ser rock, marley ser reggae etc, ajudam a reconhecer tensões dentro desses gêneros e como eles acolhem a produção ao mesmo tempo em que se deixam moldar por ela; e mantém espaço para o não-convencional.
6. não é verdade que, por ser algo de vanguarda, não há quem imitar, não há condições de gêneros que guiam a produção dentro de música experimental. talvez apenas não haja um contingente suficiente para fazer com que noise, improvisação livre, gravação de campo etc tenham vidas autônomas. a música eletroacústica, fortemente institucionalizada nas universidades, tem.
7. em teoria o experimental é meta-gênero que organiza parcamente sobre os princípios da radicalidade, do inusitado e do incomum, gêneros diversos. é difícil realmente relacionar isso a (i) e (ii). do ponto de vista social, entretanto, recusar o nome que direciona pessoas a uma cena talvez seja não se identificar com a cena. querer fazer parte de outras cenas, querer circular mais, querer surpreender as pessoas tocando em outros palcos, para um público desavisado, por exemplo.
8. por outro lado, se é que experimental tem conotações normalmente negativas, “não me chame de experimental, venha ver meu show você também” soa como uma frase razoável de auto-promoção. por outro lado, imagine alguém do sertanejo recusar em geral seu gênero (ele recusa um subgênero quanto é vantajoso afunilar seu público alvo).
[dos rascunhos, maio de 2021; 3 anos depois parece que, em vez de um termo negativo, experimental passou a ser a nova palavra que traz ares de novidade aos produtos culturais – de modo que a batalha se tornaria outra – valeria a pena defender a circunscrição que orienta ouvintes a músicas menos convencionais, ou não – deixar as forças mercantis aplicarem a etiqueta como expediente de marketing (e há pessoas que confundem isso com algum problema mal formulado sobre democracia e elitismo etc – é preciso olhar a diferença entre festivais x cenas)]
o mundo já havia acabado. naquela mesa o lance de dados sempre obedecia a uma progressão aritmética. naquela velha mesa, tiras de madeira gastas, esburacadas, naquela casa, naquela praça, naquele quarteirão, ruas de asfalto gasto, esburacadas. progressões aritméticas. das árvores na rua, dos cestos de lixo na rua, dos postes na rua, das ruas no quarteirão, dos quarteirões no bairro. foi passeando e notando que desde então, desde o fim do mundo, tudo sempre obedecia a alguma progressão aritmética. foi passeando e notando que ele vislumbrou a possibilidade da grande morte. da morte que encerraria tudo. encerraria a sequência de todas as sequências. e que todas as sequências encerradas, seriam aritméticas.