estávamos na ufmg para um encontro do grupo de pesquisa modos de presença nos fenômenos estéticos e no preâmbulo à reunião, lembrei de devolver petrogrado, xangai: as duas revoluções do século xx, de alain badiou, para thiago borges. em seguida, matreiro, retirei da minha mochila a floresta da destruição, um livro jogo de ian livingstone, e perguntei para filipe andrade, como boutade: – você já leu esse? ao que ele respondeu, com seu jeito gentil-formal habitual: – esse ainda não.
muito antes da instagramização de tudo me afastar da fotografia, artistas que evidenciavam a categoria da presença em suas performances eram, entretanto, rapidamente fragilizados por fotógrafos que, armados como aranhas, esquadrinhavam os movimentos, transfigurando o acontecimento potencial em pura possibilidade imagética. em heidegguês, gestellizavam. e não via artista algum resistir a tal canibalização, frente a um fotógrafo mergulhado em sua ânsia pelo futuro, confirmando clique a clique sua destinação. que a obra, registrada, possa perdurar. que a obra, divulgada, possa se difundir. a experiência, feita subordinar-se ao pretérito e ao porvir, encontra finalmente na presença mais uma maquiagem, um adereço.
o pessoal havia dito que a artista teta lírica se apresentava como teta, e que inseria sempre que podia a palavra “teta” no meio de sua fala, mesmo quando a conversa não fosse sobre seu personagem. daí imaginei alguém entendendo errado, dizendo: seu nome é tieta? mas carolina, em ato, superou minha imaginação em muito, porque achou que ela era realmente gaga. se realmente fosse, entretanto, por que o seria só para te e ta? em um livro altamente duvidoso mas divertido, escrito para estudantes de japonês nível jlpt n3, 失敗図鑑 – o livro ilustrado dos fracassos, há um capítulo dedicado a salvador dali. dizia dele, que era tão tímido que muitas vezes preferia viver dentro do personagem.
最高の画家は、自分自身が「芸術」でなくてはいけないからだ。例えば、水雨で上向きに固めたこの髭 。
(os grandes pintores devem se tornar eles mesmos “arte”. por exemplo. esse bigode apontando para cima, endurecido com água da chuva).
– Mas… deixe-me contar minha piada de gato. É muito curta e simples. Uma anfitriã vai dar um jantar e tem um belo bife de T-bone de três quilos sobre a bancada da cozinha, aguardando para ser preparado enquanto ela estiver conversando com os convidados na sala de estar, tomando alguns drinques e coisas do tipo. Mas então ela pede licença para ir até a cozinha preparar o bife… e ele não está mais lá. E o gato da família está num canto, limpando o rosto tranquilamente.
– O gato pegou o bife – disse Barney.
– Será? Os convidados são chamados, discutem a situação. O bife sumiu, todos os três quilos. Lá está o gato, parecendo bem alimentado e feliz. “Pese o gato”, alguém diz. Já tomaram alguns drinques, parece uma boa ideia. Então, eles vão até o banheiro e pesam o gato na balança. Ela marca exatos três quilos. Todos veem o peso indicado, e um convidado diz: “Pronto, achamos o bife”. Estão satisfeitos, agora sabem o que aconteceu. Têm uma prova empírica. Então, um deles fica apreensivo e diz, confuso: “Mas onde está o gato”?
– Já ouvi essa piada antes – disse Barney. – Ea inda não entendo a aplicação.
Anne disse:
– Essa piada apresenta a essência mais pura já alcançada para o problema da ontologia.
[Philip K. Dick. Os três estigmas de Palmer Eldritch. trad. Ludmila Hashimoto. Aleph, 2022, p. 238]
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[a piada do gato q pesava o mesmo q o bife q sumiu da cozinha. ao constatarem a igualdade, pesando o gato, disseram: achamos o bife. mas então, onde estaria o gato? “essa piada apresenta a essência mais pura já alcançada para o problema da ontologia”. mas por que? pense no vinho e na hóstia. e no mapa, que não é o território, e no vaso, que não é a ceramista.]
poucas vezes 5 minutos passam tão devagar quanto aquelas em que, esperando por sua prova de concurso, em frente à porta fechada do lamusa, você suspeita que ninguém virá, que toda a ansiedade e preparo das últimas três semanas foi em vão, que você foi desclassificado por algum motivo elusivo e que talvez houvesse, em meio a alguma retificação antiga, a necessidade de enviar algum e-mail, em algum momento, e que possivelmente ninguém iria avisá-lo disso, o domínio dessas minúcias fazendo parte do caráter dracônico da coisa, e provavelmente teria sido melhor não ter viajado de belo horizonte à curitiba de avião, com febre e inflamação no braço, carregando na mochila todos esses documentos impressos, cópias do projeto e planos de aula, 200 páginas, até mais.
é conhecimento tácito, dentro de cenas artísticas amadoras, que um artista que se apresenta no mesmo dia que outro assiste ao colega. invoquei tal injunção outro dia como “o princípio da amizade”, embora em seguida, para obter algum efeito cômico, tenha feito uma explicação que envolvia mais a noção de caridade: um músico sofre ouvir a música do outro. estávamos nos perguntando se deveríamos começar e eu comentei que faltava chegar o pessoal que ia tocar depois. haviam saído, mas logo chegaram. de todo modo, pude pensar um pouco sobre isso: a diferença entre caridade e amizade. o princípio, afinal, era realmente um de caridade. a amizade, eventualmente produzida, é algo que pode ou não florescer dali. provavelmente por isso que minha invocação tenha sido engraçada, mas não a explicação que seguiu.
trabalhar em uma tese de doutorado realmente afetou meu engajamento blogueiro; não me despedi de 2021 nem de 2022. despeço-me de 2023 com apenas 10 postagens no blogue principal (contando um comentário sobre como uma tese se desdobra inadvertidamente; um outro sobre um assunto da tese – os indiscerníveis, embora sob o ponto de vista mais relaxado da confeitaria; minha apreciação de steppenwolf, do hesse; uma reflexão sobre um concerto de 20 anos atrás em que bati palmas na hora errada). de modo que é de bom tom dizer que terminei-a (a tese), realizando a defesa em julho e o depósito final em outubro. “a música como arte: significação musical e a ontologia da obra de arte de Arthur C. Danto” pode ser acessada no repositório da UFMG. ademais um ensaio que acabou ficando de fora, comentando um pouco também sobre o trabalho da rrayen e do marco scarassatti, virou um capítulo de livro; outro, em cima da noção de modos de presença do rodrigo duarte, virou outro.
o blog 馬鹿, coitado, foi completamente abandonado. em 2022, entretanto, houve vários comentários, alguns interessantes, como sobre um certo prometeismo no anime bna, do imaishi; considerações metodológicas a partir de um filme de jacques tatit; uma apreciação generosa do matrix 4. em 2021, uma defesa do livro dos irmãos strugatsky contra o filme stalker, do tarkowsky; um texto-resumo apaixonado do genial episódio 1 do anime shin mazinger z.
e já que mencionei postagens dos dois anos que estive em falta, faço uma seleção de meu blogue normal, em 2022: teste da copa comenta sobre como a ideia do cancelamento não funciona com pessoas poderosas (neymar, por exemplo); capivara de espinoza se posiciona contra os arroubos perspectivistas (quanto à determinação da identidade); segredo critica um tropo comum do heroísmo – a escolha infernal; machado da restituição e harpa da perfeição é um belo texto sobre equipamentos mágicos. e em 2021: torrada, elaborando sobre ter e comer o bolo; assinamento, o contrário de cancelamento.
aproveitando o limbo acadêmico na segunda parte de 2023, lancei um pequeno álbum de paródias musicais concebidas em 2007 (incluindo o-bla-di o-bla-da), resgatando também o projeto da época de trabalhar a partir de músicas dos beatles, ao piano (mais sobre isso ano nesse ano). com bizzotto e scarassatti, gravamos ao vivo na casa fúnebre. o trio QI, além quartas de improviso temporada 16 se apresentou também no praça 6, que continua forte, duas vezes por ano. não obstante, meu trabalho mais importante mesmo foi lançado no final de 2022: palavra-palavra traz várias reordenações em ordem alfabética de clássicos do brasil (como faroeste caboclo, geni e o zepelim, diário de um detento, o hino com a fafá de belém…). (teve também o projeto insano de masterizar as 107 faixas da coletânea ceasefire now, em pról de uma associação de mulheres da região de gaza, como maneira de ajudar os selos envolvidos a ajudar essas mulheres)
dei duas oficinas do jogo musical cobra, relembrando os idos de 2014, quando o aprendi com o coletivo d’istante. encerramos no QI178, na casa fúnebre; o outro ocorreu na UFMG, como professor convidado de uma disciplina. toquei duas vezes na neu niterói, um dos mais ativos espaços da cena de música experimental carioca atual. a primeira com projeção ao vivo por tetsuya maruyama, a segunda fazendo uma versão ao vivo de meu vídeo dois improvisos duplos, de 2021. repeti esse show no lugar sem nome, em sampa, novo espaço sob o mário. em fevereiro já tinha estado por lá, em residência com o trio infinito menos e mostrando vídeo bug biziu, feito com a carol (ainda não publicamos na íntegra). aliás, em maio, mudei para morar com ela. demos voltas na pampulha de bicicleta. jogamos ping pong frequentemente (outros QIs aconteceram – houve um envolvendo ping pong inclusive, em colaboração com o música quente). organizei um ou outro boteco ruído, continuando a colaboração com a kasa invisível. continuei com meu grupo de estudos quinzenal de filosofia da música. continuei jogando futebol semanalmente aos domingos de manhã. continuei estudando japonês: consegui conversar com alguns nativos, no ICA aqui em BH – congresso internacional de estética.
li 83 livros, ou devo dizer – apreciei? (uma parte deles foi no formato áudio – aderi totalmente a esse tipo de fruição – e dá para acompanhar a guerra dos tronos, durante faxinas e caminhadas). o que mais gostei, de longe, foi blue mars (marte azul), do stanley kim-robinson. a trilogia de marte tomou o lugar, aliás, de melhor série de livros que já li (li green mars em 2022); a origem das espécies do darwin realmente vale a pena, mesmo para os ignorantes em biologia, como eu; tomasello foi o cientista da vez, dá vontade de ler mais; brandom e sellars são autores do coração; o ensaio do mishima brilha, apesar do conteúdo altamente duvidoso; bregman continua fofo e interessante; e forever peace é o melhor de handelman – ficção militar por pessoas com experiência militar tem realmente outro caráter – mais deliberação e reuniões, menos tiros e bravataria. dos álbuns e séries que recomendo acho que vocês terão notícia em breve.
ao continuar a saga envolvendo a leitura em japonês do mangá ワンパマン (one punch man – homem de um só soco), chegando ao volume 7, encontrei a expressão “haga tatanai“. o chefão da quadrilha intergaláctica da matéria escura é forte o suficiente para que Saitama, nosso herói, use uma “sequência normal de socos” ao invés de um único soco decisor, quando da luta. mesmo assim, ao final, Boros (esse é o nome de nosso rival ousado) sente-se compelido a usar a expressão. 歯が立たない, composta das palavras dente e não levantar, quer dizer: algo o qual não se coloca o dente, duro demais para mastigar, no sentido de não dar para o gasto ou ser sem chance, e não de serosso duro de roer.
na mesma noite sonhei que haviam dentes meus podres, que estavam se desprendendo. um deles saiu grudado a um pedaço de gengiva alongado, com uma raiz ao final, completando a figura de um L orgânico e inquietante. como frutos amadurecendo, eu perdia novos dentes de leite, dentes de leite desconhecidos, dentes de leite que antes camuflavam-se como dentes permanentes.
fazer café tem seus percalços. mas há também perigo. ao posicionar o coador em cima da garrafa térmica é preciso observar a possibilidade de instabilidade, na falta de um encaixe harmônico. uma água quente que escorre inadvertidamente para fora do filtro, porque o coador deslizou, inclinando, por mais que não exatamente fervente, queima feio a mão esquerda que tenta corrigir o descuido.
uma decisão então se afigura. aliviar as dores enfiando a mão em um balde de água fresca, um pouco fria (gelar com moderação), ou imediatamente aplicar babosa. modernamente, entretanto, aprendemos que devemos tirar a aloína – a gosma amarela que escorre quando cortamos a folha carnosa, por sua toxicidade. e o processo envolvendo descansar essa folha na água toma pelo menos 20 minutos. a solução seria cortar um pedaço, tirar apenas o excesso evidente e usá-lo imediatamente, reservando o resto, depois inclusive colocando parte na geladeira.
a diatribe envolvida: ao aliviar a queimadura na água, estaria eu fadado a bolhas que, caso tivesse optado pelo tratamento babosa integral, evitaria? de todo modo, as bolhas recederam.
mão esquerda no sétimo dia após o acidente. o café ficou bom, mais forte que o habitual (parte dele caiu, não apenas na mão, mas no chão).