desde que sejam insolúveis

em fragmento de história futura, livrinho de ficção futurológica/utópica de gabriel tarde, 1896, há um trecho especialmente interessante sobre a teologia dos neo-trogloditas, habitantes dos interiores da terra, agora em parte oca, escavadores que tiveram de se tornar, quando de um sol moribundo e uma era do gelo mortífera na superfície do planeta.

Falemos em primeiro lugar das ciências. Poder-se-ia pensar que, a partir do dia em que os astros e os meteoros, a fauna e a flora, cessaram de desempenhar qualquer papel em nossa vida, em que as múltiplas fontes da observação e da experiência cessaram de jorrar, a astrologia e a meteorologia desde então estanques, a zoologia e a botânica, transformadas em paleontologia pura, sem falar de sua aplicação à marinha, à guerra, à indústria, à agricultura, todas desde então da mais profunda inutilidade, não dariam sequer mais um passo adiante e cairiam no mais completo esquecimento. Afortunadamente, essas apreensões se demonstraram vãs. Admiremos a que ponto as ciências, outrora eminentemente úteis e indutivas, legadas pelo passado, tiveram o dom de apaixonar e de agitar pela primeira vez o grande público assim que adquiriram esse duplo caráter de se tornarem um objeto de luxo e uma matéria de dedução. O passado acumulou um tamanho amontoado indigesto de tabelas astronômicas, de memoriais e resenhas a propósito de medições, vivisseções, experimentações inumeráveis, que o espírito humano pode viver sobre esse fundo até a consumação dos séculos; já era tempo para que se pusesse ordem e se extraíssem as consequências desses materiais. Ora, a vantagem é grande, para as ciências de que falo, do ponto de vista de seu sucesso, de se apoiarem unicamente sobre testemunhos escritos, não mais sobre as percepções dos sentidos, e de invocarem a propósito de tudo a autoridade dos livros. (Pois dizemos hoje a biblioteca, ao passo que se dizia outrora a bíblia – evidentemente há uma grande diferença). Essa grande e inapreciável vantagem é a de que a extraordinária riqueza da biblioteca nos mais diversos documentos nunca deixa sem material um teórico engenhoso e basta para assegurar copiosamente, paternalmente, num mesmo banquete fraterno, as opiniões mais contraditórias. Da mesma forma, era a admirável abundância da legislação e da jurisprudência antigas em textos e sentenças de todas as cores que tornava os processos tão interessantes, quase tanto quanto as batalhas do populacho de Alexandria, a respeito de um iota teológico. Os debates de nossos sábios, as polêmicas relativas ao núcleo vitelino do ovo dos aracnídeos, ou ao aparelho digestivo dos infusórios: eis aí as questões candentes que nos agitam e que, se tivéssemos o infortúnio de possuir uma imprensa periódica, não deixariam de ensanguentar nossas ruas. Pois as questões inúteis e mesmo nocivas têm sempre o dom de apaixonar, desde que sejam insolúveis.

“pois as questões inúteis e mesmo nocivas têm sempre o dom de apaixonar, desde que sejam insolúveis”. taí uma boa caracterização irônica dos embates entre e dentro de doutrinas religiosas, em geral.


postado em 31 de outubro de 2019, categoria citações : , ,